O Contador 2 (2025)

Mentes brilhantes

título original (ano)
The Accountant 2 (2025)
país
EUA
gênero
Ação, Policial, Comédia, Suspense
duração
124 minutos
direção
Gavin O’Connor
elenco
Ben Affleck, Jon Berthal, Cynthia Addai-Robinson, Daniella Pineda, J.K. Simmons, Robert Morgan, Allison Robertson, Andrew Howard
visto em
Cinemas

O contador (Ben Affleck) está de volta. Nesta comédia de ação, as particularidades do herói constituem uma bênção e uma maldição. Por um lado, o sujeito portador de uma síndrome não-nomeada (porém, muito próxima do espectro autista), se sente solitário devido à dificuldade de fazer amigos e conquistar mulheres. “Meu cérebro não funciona desta maneira”, ele argumenta, quando o irmão Braxton (Jon Berthal) sugere o flerte com uma bela mulher. Por outro lado, sua inteligência lógico-matemática lhe permite desvendar gigantescos esquemas de corrupção após um rápido olhar no imposto de renda de um empresário. 

O Contador 2 tenta fazer com o autismo aquilo que Novocaine: À Prova de Dor efetuou com a CIPA, transformando uma doença ou distúrbio em superpoder. Desta vez, encontra para o herói uma adversária à altura (Daniella Pineda), também “beneficiada” por uma síndrome, no caso, o savantismo. Segundo o roteiro de Bill Dubuque, ambos são inteligentíssimos e violentos na mesma medida. O que ocorre quando se opõem duas pessoas incapazes de sentir remorso ou lidar com confrontos morais? A resposta reside num filme de ação que, na tentativa de afastar pressupostos éticos, brinca com a robotização de seus combatentes.

Apesar da trama, resta-nos contemplar a habilidade do autor em elevar um material bastante fraco a um nível mais do que aceitável.

Há muito a criticar no texto de Dubuque, que considera hilárias as cenas de exploração de trabalho infantil e dedica longuíssimas interações mal escritas a cada personagem — a briga de Braxton com o espelho, antes de ligar para a dona de um cachorrinho, beira o constrangimento. O roteirista ainda concebe o México exclusivamente enquanto terra de bandidos organizados em cartéis, enquanto cabe aos norte-americanos desmontarem a criminalidade e salvarem o mundo. As criancinhas se transformam, como de costume, em motivos de chantagem emocional, figurando como moeda de troca entre vilões profundamente malvados e nossos heróis bondosos, apesar de truculentos (afinal, eles gostam de cachorrinhos). 

Nota-se uma pulsação conservadora, mesmo reacionária, por trás desta iniciativa, que poderia facilmente ser encarnada por Bruce Willis ou Mel Gibson quatro décadas atrás. Retorna-se ao conceito tradicional de heroísmo: mesmo os dois irmãos, sedentos por carinho, resolverão suas pendências com metralhadoras em mãos. As mulheres, de aparência forte, ainda precisam ser salvas, ou descartadas da ação “de verdade” durante o confronto final. Adiante, serão humanizadas graças à promessa de retorno dos filhos ou reinserção na família patriarcal. O filme sonha com um retorno à sociedade de antigamente.

Felizmente, o resultado é elevado pela excelente direção de Gavin O’Connor. O cineasta faz milagres a partir dos magros personagens e magérrimos conflitos em cena. A cena de abertura surpreende bastante, devido à elegância de uma perseguição no bingo. A sequência envolve diferentes protagonistas, vários cenários, incluindo entradas e saídas de distintos cômodos. Evolui da tensão à ameaça, passando de uma canetada no pênis ao atropelamento e à troca de tiros. Em questão de minutos, os diversos olhares (muito bem articulados pela montagem) se convertem em enfrentamento, sem pressa de chegar à carnificina.

A este propósito, o diretor e o montador Richard Pearson jamais aceleram, nem fragmentam excessivamente a narrativa — escolhas que talvez soassem óbvias tanto para a ação quanto para a comédia. O Contador 2 possui longas sequências contemplativas, a exemplo dos dois irmãos conversando no teto de um trailer, e conduz a espera com uma tensão refinada (vide a chegada das três prostitutas no quarto e a investigação de Marybeth Medina num estacionamento). Chegadas as lutas, nada de trilha sonora de impacto: o compositor Bryce Dressner prefere música dramática, típica de histórias inspiradoras, ou uma melodia indie. Apesar do ponto de partida apropriado à ação brucutu, O’Connor dirige como se tivesse um drama humano e complexo em mãos. E isso faz toda a diferença no resultado.

Por este motivo, os personagens não precisam elevar o tom da voz durante os embates, nem parecerem excessivamente virtuosos. Pelo contrário, temos uma policial colaborando com bandidos, que estão sinceramente dispostos a ajudá-la na investigação. Para isso, recorrem a chantagem, tortura e invasão de privacidade. Os (nobres) fins justificariam os meios (escusos), neste caso? Onde se traça o limite entre um bem maior e as irregularidades do processo? Embora o longa-metragem nunca se aprofunde no dilema ético e moral de Marybeth, ele o menciona de maneira relativamente eficaz.

Em paralelo, prefere se focar na história de aproximação entre dois irmãos, ao invés da conquista de uma mocinha, ou o reconhecimento de sua força e valentia pela sociedade. Quem cogitaria desenvolver dois matadores enquanto sujeitos tristes, solitários, procurando afeto? Cobrando uma ligação telefônica no final do ano, ou alguma viagem de férias juntos? Certo, o quiproquó envolvendo crianças mexicanas (com o rosto sujo de terra, no pior molde da exotização latina) visa humanizá-los. Mesmo assim, partindo da masculinidade clássica, O Contador 2 acredita que a verdadeira jornada de Christian e Braxton seja em direção um ao outro. O amor entre homens.

Estes momentos produzem o melhor humor do filme — não para ridicularizar sua tentativa de aproximação, mas a aparência de força à qual estão associados. O humor nasce da mise en scène e das situações, ao invés da chacota com os personagens. Assim, rimos da conversa entre Braxton e uma mulher estranhamente amedrontada, porque só no final o enquadramento abre o bastante para percebermos meia dúzia de cadáveres ao redor dela. Divertimo-nos com a identidade de uma assassina revelada pela selfie de uma anônima nas ruas (via aproximação em Zoom), e da invasão remota ao computador de outra personagem. Rimos por testemunhar pessoas se comportando como não deveriam — ou seja, pela suposição de um mundo amoral, ao invés de imoral.

É possível que pessoas com autismo, e seus familiares e entes queridos, não apreciem este retrato exagerado. Nem os mexicanos. Nem as mulheres. Ora, apesar da trama, resta-nos contemplar, de fato, a habilidade do autor em elevar um material bastante fraco a um nível mais do que aceitável. Para tantos espectadores que ainda apostam na equação “filme bom = história boa”, este projeto demonstra como uma história e sua representação em imagens e sons podem estar totalmente desconectadas — em outras palavras, o valor da mise en scène. Se existe um fator realmente empolgante em O Contador 2, é a oportunidade de testemunhar um belo cineasta em ação. 

O Contador 2 (2025)
7
Nota 7/10

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