Há diversas ousadias em O Predador: A Caçada (2022), que vão muito além da presença de uma garota no papel principal. Em primeiro lugar, o filme dirigido por Dan Trachtenberg promove um encontro entre o universo futurista do Predador comas comunidades nativo-americanas do século XVIII. O cinema raramente posiciona estes dois polos como equivalentes: o filme “de época” costuma estar apartado do universo de monstros, e quando se encontram, não costumam ser vistos como equivalentes em forças e recursos.
Assim, o movimento inicial do longa-metragem se encontra no respeito à resiliência e à tecnologia dos povos indígenas. Superando os embates baseados unicamente na força bruta e na virilidade, típicos dos blockbusters dos anos 1990, estes conflitos requerem inteligência, senso de estratégia, conhecimentos de medicina e capacidade de argumentação. Índios deixam de ser vistos como vítimas, ou como uma população primitiva, para se tornarem exemplos de luta ao espectador contemporâneo.
Isso talvez justifique diversas modernizações na trama e na condução dos atores, que talvez incomodem os espectadores sedentos pelo “respeito histórico”. Neste projeto, os jovens de séculos atrás se comportam como adolescentes de fala malandra e trejeitos associados ao século XXI. No entanto, a presença da criatura parcialmente invisível, e de naves sobrevoando terras Comanche permitem algumas liberdades criativas. Ao invés de um retrato fiel deste grupo social, o diretor oferece uma representação livre do que os nativo-americanos significaram à História.
Em segundo lugar, o adversário é revelado calmamente, através de uma progressão cirúrgica. O terço inicia efetua meras alusões ao Predador, representado por símbolos: a nave distante, um animal morto em decorrência dos ataques, o barulho ao redor. No segundo terço, ele surge em sua versão semi-invisível, caso em que os efeitos visuais sugerem uma criatura gigantesca e forte, somente por meio das criaturas derrotadas. No terço final, o inimigo se revela em detalhes.
Os autores sustentam a tese de que o verdadeiro predador ainda é o ser humano. […] As guerras travadas entre humanos são postas em paralelo com as lutas da cadeia alimentar.
Esta gradação já tinha sido utilizada em outros bons filmes de monstros, a exemplo de Godzilla (2014), do próprio Rua Cloverfield, 10 (2016), também comandado por Trachtenberg, e especialmente pelo clássico Tubarão (1975), que serve até hoje de modelo narrativo a diversas iniciativas do gênero. O recurso permite que o espectador imagine o vilão, projetando nele seus próprios medos e anseios. Nenhuma imagem será tão potente quanto aquela criada na mente de cada espectador, razão pela qual a sugestão através da invisibilidade carrega forte potência criativa.
Em terceiro lugar — e mais importante de todos —, os autores sustentam a tese de que o verdadeiro predador é o ser humano. Dois elementos contribuem a esta leitura: por um lado, o roteiro insiste que a criatura alienígena revida à violência iniciada pelos humanos. Quando não atacada, permanece numa coabitação pacífica com outros seres. Por outro lado, um grupo de caçadores canadenses captura e tortura os personagens indígenas, remetendo ao histórico de colonização e extermínio. A vilania caricatural destes homens reforça a perspectiva antibelicista.
As guerras travadas entre humanos são contrapostas ao funcionamento da cadeia alimentar. Pelo menos três sequências revelam animais devorando-se entre si, como parte da regra natural de sobrevivência nas florestas. Insetos são comidos por ratos, estes são capturados a seguir por cobras, e então por animais maiores. No entanto, enquanto esta violência ganha um retrato de inevitabilidade, os enfrentamentos entre humanos são marcados por perversão e irracionalidade. Trachtenberg sublinha o absurdo de uma espécie destruir a si própria, ao contrário dos demais animais, que necessitam da predação para sobreviver.
A presença feminina também constitui um elemento importante, menos por sua novidade (há muitos anos as grandes produções descobriram a possível rentabilidade destas tramas) do que pelas reações de ódio da parcela conservadora da sociedade. Homens raivosos gritaram contra a presença de uma garota jovem e baixa lutando contra o Predador. Ora, o roteiro esclarece as estratégias da inteligente personagem para superar o adversário — o confronto nunca se baseia na força bruta. Além disso, caso o ser gigantesco enfrentasse um homem indígena um pouco mais alto do que Naru, a luta seria considerada justa? Poucos argumentos justificam tal raciocínio para além da misoginia evidente.
Esta parcela do público cresceu com centenas de superproduções onde Tom Cruise, Bruce Willis, Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e tantos outros venciam, sozinhos, exércitos inteiros, muito mais armados e fortes do que si próprios. Entretanto, ela não enxergava nenhuma incoerência nestas lutas desproporcionais, construídas como verdadeiros elogios à masculinidade-espetáculo. A própria ideia que uma mulher possa vencer um homem forte (o Predador possui aparência antropomórfica) soa como uma afronta à concepção machista.
Discussões extrafílmicas à parte, O Predador: A Caçada ainda surpreende pelo domínio do cineasta no controle dos planos, enquadramentos e profundidade de campo, junto ao diretor de fotografia Jeff Cutter. Trachtenberg sabe quando revelar a violência de perto, e quando sugeri-la à distância. Ele descarta qualquer prazer sádico nas mortes — mesmo dos temíveis colonizadores —, enquanto evita transformar o espectador num voyeur do sofrimento alheio. As cenas de tortura envolvendo Naru (Amber Midthunder) e Taabe (Dakota Beavers) são exemplares neste sentido.
Outras passagens surpreendem pela combinação de rigor estético e criatividade. A decisão de iluminar a batalha noturna com o sangue fluorescente do Predador rende uma sequência de inesperada beleza; enquanto o desespero totalmente silencioso da guerreira numa lama movediça comprova o talento do diretor para o desenvolvimento da tensão sem ferramentas explicativas (diálogos, trilha sonora, narração em off). O autor confia na inteligência do público, algo memorável para um blockbuster deste porte.
Por fim, o filme resulta numa experiência complexa em termos de construção cinematográfica, a partir de um roteiro simplíssimo. A sobrevivência de animais e povos contra seus agressores constitui o único motor de conflito do roteiro, que evita tramas paralelas, dilemas de personagens coadjuvantes ou cenários e temporalidades distintos. Restam unicamente os atos de atacar ou se proteger, viver ou morrer. Não é fácil propor uma discussão inteligente e pertinente aos tempos contemporâneos a partir de embates tão básicos, no sentido estrito da palavra. Em sua simplicidade, o projeto revela um valor precioso ao circuito cinematográfico atual.