O Sequestro do Papa (2023)

Delito de cristianismo

título original (ano)
Rapito (2023)
país
Itália, França, Alemanha
gênero
Drama
duração
135 minutos
direção
Marco Bellocchio
elenco
Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi, Enea Sala, Leonardo Maltese, Filippo Timi, Fabrizio Gifuni
visto em
Cinemas

O Sequestro do Papa impressiona por dois motivos muito diferentes. O primeiro deles diz respeito àquilo que se convencionou chamar de “valor de produção”. Este drama italiano está repleto de cenários suntuosos, muitas dezenas de personagens e figurantes, efeitos grandiloquentes de luz e música. A reconstituição da Itália durante o século XIX, sob o regime do Papa Pio IX, possui o cuidado de figurinos, cenários e acessórios típico de uma grande produção, com orçamento folgado para reproduzir o luxo esperado das altas instâncias do poder.

Parte considerável do público e da crítica abraçou o resultado graças à construção imponente, ambiciosa em escopo (são 135 minutos de narrativa com muitos saltos temporais, em cidades distintas) e alcance político. Bellocchio, crítico habitual da influência religiosa nos costumes italianos, aborda a manipulação do cristianismo através do caso exemplar de um garoto judeu, batizado contra a vontade dos pais, e sequestrado pela Igreja para ser criado como um bom menino católico. 

Logo, chega o segundo fator impressionante: o classicismo operístico da obra. O longa-metragem não apenas retrata uma época passada, mas soa como uma forma de cinema apropriada ao século passado. O autor aposta num filme “adulto”, munido de evidente vontade de impressionar pela gravidade, pelo aspecto soturno na construção de cada imagem ou som. Em oposição a nossos tempos cínicos, maliciosos, parcialmente cômicos ou debochados, Bellocchio dirige como quem afirma: “Eis a verdade”, “Descubra o que realmente aconteceu”

Bellocchio entrega-se a uma demonstração tão competente quanto didática, tão eficaz quanto maniqueísta.

Tamanha autoimportância na construção audiovisual se acentua pelo uso de recursos anacrônicos. A trilha sonora constitui um dos aspectos mais chamativos. A orquestra trabalha de maneira ininterrupta: cada tristeza, alegria, raiva, dúvida, medo, esperança é pontuada por dezenas de violinos, violoncelos, violas. É tentador descrever o longa-metragem enquanto “novelesco”, apesar de o termo ter se convertido em muleta para a crítica de cinema. Mesmo assim, ele se aproxima do folhetim graças ao apreço exagerado pelos sentimentos, e à tendência a sublinhá-los por ferramentas reiteradas de linguagem (a atuação exagerada + a trilha lacrimosa + planos próximos no rosto comovido + diálogo emocionante).

Para esclarecer seu posicionamento contrário ao autoritarismo religioso, Bellocchio converte o Papa (Paolo Pierobon) em um vilão de perversidade cartunesca. Apesar das qualidades evidentes do ator, o pontífice é levado a exagerar nos traços, na fala, emitindo diálogos do tipo “Posso lhe fazer mal, muito mal!”, antes de gritar “Eu sou o Papa!”. Já a criança angelical recebe duas cenas com planos próximos no rosto que chora e grita de saudade dos pais, enquanto é retirado à força dos braços paternos. Há o bem e o mal, a vítima e o carrasco, as luzes e as trevas. A sutileza passa longe deste debate mais moral do que político.

A questão do ponto de vista se torna essencial. O drama não é contado pela perspectiva do Papa, nem dos pais da criança, nem mesmo do próprio jovem sequestrado (interpretado por Enea Sala quando pequeno, e Leonardo Maltese na juventude). A mise en scène aposta numa obra coral, externa e objetivista, que planeja mostrar o que todos estão fazendo simultaneamente, em paralelo. Tal distanciamento aprofunda a vontade de “revelar a verdade”, mostrar como os fatos realmente ocorreram. O esvaziamento da psicologia dificulta compreender o que o menino sente, ou a maneira como os próximos convivem com a sua ausência. Aquilo que não se transmite no corpo, não interessa ao cineasta.

Alguns símbolos discretos acenam ao potencial do filme em abandonar o aspecto teatral para abraçar o furor. Para um projeto tão indignado com a violência, teria sido essencial minimizar tamanha pose em prol de uma representação mais ousada desta raiva. O instante em que a estátua de Jesus na cruz se transforma num homem real, para sair caminhando Igreja afora, carrega uma potência jamais repetida no restante da obra.

Isso porque, na intenção de apontar para os crimes cometidos pela Igreja, Bellocchio investe em encenações tão eficazes quanto óbvias. Há o close-up no rosto da mãe inconformada, que encara o prato vazio previsto para o filho durante a refeição; assim como o pai gritando furiosamente no tribunal vazio, após um resultado negativo. A dúvida e a indignação necessariamente passam pelo corpo, exteriorizam-se nas lágrimas, no grito, no gelo seco excessivo durante o passeio no canal, na imagem do amiguinho doente no dormitório, sucumbindo à ausência do carinho materno. 

A obra parte da premissa que o autoritarismo religioso pode ser nocivo, chegando exatamente à mesma constatação, 2h15 depois. Bellocchio entrega-se a uma demonstração tão competente quanto didática, tão eficaz quanto maniqueísta. Nunca oferece nada ao espectador para refletir, através de ambiguidades, duplos sentidos, vontades contrárias — recebemos o ensinamento pronto, mastigado, a respeito de qual grupo deveríamos defender, e qual deveríamos repudiar.

Aliás, a narrativa se ressente da representação da sociedade para além da família sofrida e da cúpula da Igreja. Em cada salto temporal (ajudado por letreiros simplificadores), descobrimos que o povo está indignado contra o pontífice, embora nunca se compreenda a evolução deste sentimento compartilhado. Revoluções nascem em cortes abruptos da montagem. Por isso, cenas de insurreições parecem inverossímeis, visto que desconhecemos seus líderes, seus integrantes, e a maneira como enxergam o domínio do Papa. O que pretendem? A derrubada deste homem em particular? De toda a cúpula católica? De qualquer governo religioso? Para colocar qual forma de regime em seu lugar? Mistério.

O título do filme no Brasil também gera certo desconforto. O Sequestro do Papa sugere que o líder religioso teria sido o homem abduzido. Trata-se de uma sugestão equivocada e sensacionalista, um clickbait dos distribuidores para aumentar o apelo do projeto. O sequestro tampouco foi orquestrado diretamente por Pio IX, como poderia aparentar, e sim por um cardeal local. O título original diz apenas “Rapto”, enquanto o título internacional, em inglês, prefere “Sequestrado: A Abdução de Edgardo Mortara”. A espetacularização enganosa do nome brasileiro talvez nos diga algo acerca da dificuldade de levar o público às salas de cinema, o que justificaria estas estratégias de ética duvidosa. Sinal dos tempos.

O Sequestro do Papa (2023)
5
Nota 5/10

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