A iniciativa por trás deste documentário está longe de ser inédita. Diversos cineastas partem da vontade de homenagear uma pessoa ou instituição que consideram excelente e, portanto, merecedora de ser imortalizada no cinema. Numa das entrevistas de O Tablado e Maria Clara Machado, o personagem felicita a diretora pelo gesto, afinal, tal história de sucesso, repleta de belas peças e grandes artistas, seria digna de ganhar um filme para documentá-la. O projeto nasce do amor ao tema de estudo.
Isso poderia parecer algo positivo, embora não necessariamente o seja. A decisão de construir um filme-elogio carrega alguns problemas básicos de concepção e execução. Em primeiro lugar, a visão somente laudatória se priva de enxergar a escola de atores como uma instituição com falhas, problemas, mudanças de posição, conquistas. Segundo uma das muitas dezenas de frases elogiosas, “o Tablado é um monte de gente feliz fazendo o que gosta”. Ali, “não se vê o tempo passar”, sugere outro.
A cineasta Creuza Gravina está menos preocupada em compreender as circunstâncias que permitiram a criação de um espaço como este, do que em elogiá-lo. Não somos convidados a refletir, ponderar, tirar conclusões próprias. Pelo contrário, o discurso vem pronto: o Tablado seria um lugar magnífico, democrático, uma família comandada por uma mulher generosa, gentil, sempre disposta a ajudar, e avessa à fama. A quem interessar possa, existe no Rio de Janeiro uma escola onde se vive maravilhas e sonhos. O resultado lembra uma peça institucional.
O Tablado seria um lugar magnífico, democrático, uma família comandada por uma mulher generosa, gentil, sempre disposta a ajudar, e avessa à fama. O resultado lembra uma peça institucional da escola.
Em segundo lugar, a primazia do tema faz com que a estética seja menosprezada. Não é raro se deparar com projetos em que os autores decidem entrevistar o máximo de pessoas possível, valorizando-se através dos grandes nomes presentes (Marieta Severo, Malu Mader, Cláudia Abreu, Lúcio Mauro Filho, Marcelo Serrado, Bárbara Heliodora, Louise Cardoso). Só então, decide-se como dar alguma forma a este material na edição. O formato dos talking heads, ou “cabeças falantes”, representa o refúgio do cinema pouco preocupado com as formas.
Aqui, fala-se com mais de sessenta pessoas, algo apresentado como trunfo. A seguir, estas conversas são entrecortadas de maneira extremamente picotada — muitas falas não ultrapassam os cinco segundos de duração. Uma, duas frases por rosto, e lá vem a tesoura ansiosa da montagem. Nenhum personagem desenvolve um raciocínio extenso, nem ganha a oportunidade de digressão. O agrupamento ocorre por temas: as principais peças de teatro; o ritmo dos ensaios; as anedotas de bastidores.
Apesar da galeria extensa de convidados, não há nenhuma dissonância entre as falas. Ergue-se uma homenagem em uníssono às incontáveis qualidades da escola e de sua criadora. O escritor Gilberto Braga, único a levantar um porém quanto a Maria Clara Machado, afirma que ela poderia ser “muito dura”, às vezes — fator transformado em qualidade, pela persistência e dedicação. Trata-se de dezenas de vozes, mas poderiam ser meia-dúzia, ou uma centena. A partir do momento em que dizem as mesmas coisas, a suposta variedade do painel se perde.
Para uma obra em memória de Maria Clara Machado, surpreende a presença discretíssima da autora, seja em imagens de arquivo, seja em entrevistas antigas. Gravina efetua um trabalho tímido de pesquisa, oferecendo poucas cenas em que a artista possa se expressar por si mesma. O documentário assume o ponto de vista em terceira pessoa: a dramaturga é construída menos por seus feitos e por sua voz, enquanto sujeito do discurso, do que pela impressão idealizada de terceiros, enquanto objeto de estudo. Interessa menos descobrir a mulher por trás das obras do que reforçar uma idolatria de seus feitos e virtudes — Malu Mader a compara, veja só, a William Shakespeare.
Assim, opta-se por um recorte de afetos. O terço central, quando os antigos membros do Tablado relembram suas anedotas de bastidores, oferece o melhor segmento do filme. Neste parêntese, podem falar sobre si próprios, sobre o dia em que foram beber e esqueceram a hora de voltar para a peça, ou o encontro com Maria Clara Machado varrendo o palco. Estas falas humanizam o processo, retirando a instituição do pedestal onde a montagem busca colocá-la. No entanto, a abertura e o encerramento retomam a chuva de elogios ininterruptos à criadora e sua criação.
Devido ao teor de conversa entre amigos, o dispositivo se permite algumas intimidades de gosto duvidoso. Um personagem é descrito em letreiros como “Ator / Conheceu a esposa no Tablado”. Que raios de apresentação é essa? Outro se emociona ao lembrar a trama de O Cavalinho Azul, quando a câmera então efetua zoom-ins progressivos rumo às lágrimas, para mostrar que ele realmente está chorando. Está vendo? Está vendo melhor agora? E agora? Existe uma insistência na emoção, em detrimento da razão. Aproxima-se destes espaços com muito coração e pouca racionalidade.
Em paralelo, as captações de som e imagem possuem registros muito variados, alguns deles com qualidade bastante prejudicada por ecos, captação de som diretamente da câmera e granulação do digital. As fotografias still são exploradas com recursos limitadíssimos de montagem. A linguagem audiovisual realmente não era uma prioridade. Como é curioso encontrar um filme que, sob pretexto de homenagear a arte e os artistas dos palcos, demonstra interesse tão limitado na própria arte que explora — o cinema. Pelo menos, não restará dúvida que a diretora ama Cláudia Abreu que ama Marieta Severo que ama Andrea Beltrão que ama Louise Cardoso que ama Maria Clara Machado que, por sua, vez, ama a todo o mundo.