Uma mulher caminha pelo corredor de uma usina. Vestida com o uniforme da empresa, ela efetua uma espécie de performance etérea, jogando os braços para o alto, encoberta por uma névoa espessa. Está triste? Feliz? Não sabemos. A porta de entrada para o longa-metragem constitui uma espécie de mistério, e também um convite para a abertura bastante particular aos sentidos. Os personagens deste filme se entorpecem de drogas, de baba de caracol, de arte, de religião, de adrenalina. De qualquer modo, procuram alguma forma de escapatória ao real.
Isso porque a realidade, neste contexto fantástico (não necessariamente futurista), não parece nada convidativa. A propaganda do governo ostenta com empolgação a implementação de uma Colônia onde são enviadas, compulsoriamente, todas as pessoas com mais de 75 anos. Alguns brasileiros sonham em se mudar para o local convidativo, onde supostamente terão as férias de seus sonhos, custeadas pelo Estado. Já Tereza (Denise Weinberg), nossa bailarina-operária citada acima, detesta a ideia da reclusão voluntária. Ela não deseja parar de trabalhar, nem se afastar do local onde vive.
É importante que a heroína de O Último Azul não seja uma senhora refratária aos governos autoritários, pelo contrário. Em diálogos, a mulher demonstra seu pensamento conservador, defendendo o status quo em relação ao trabalho e à família patriarcal. Por isso, os planos de fuga das garras do governo, para escapar à sina de inutilização compulsória, significam também uma descoberta de seu caráter revolucionário. Nota-se igualmente o relacionamento frio com a filha. Com pouco a perder, Tereza seria a candidata ideal à Colônia, exceto pelo fato que não deseja perder a própria liberdade. “Vão mandar no meu querer agora, é?”, ela questiona.
Surpreende no projeto o aspecto melancólico, contemplativo. A condição de fugitiva da heroína constitui mera desculpa para retirá-la de certa invisibilidade social na qual se via confortavelmente instalada.
O diretor Gabriel Mascaro poderia dedicar sua história a detalhar a tal Colônia futurista, a imaginar os líderes autoritários no poder (na esteira de inúmeras produções recentes com sátiras a Bolsonaro), a planejar um plano de ação empolgante, repleto de perseguições e estratégias de disfarce. Ora, o filme não segue por nenhum destes caminhos. Aposta-se que o espectador possa projetar com facilidade seu próprio imaginário da extrema-direita (não faltam referências neste atual momento, por todo o mundo). Posto que vemos somente aquilo que nossa heroína enxerga, enquanto ela não chega à tal Colônia, também não descobrimos o espaço imaginário, que combinaria luxo e decadência.
O foco se encontra, assim, na jornada impulsiva e libertadora da mulher idosa. Ela sai de casa, sem saber para onde, rumo à concretização do sonho de voar. Trata-se, obviamente, de uma desculpa, um objetivo que ela precisa oferecer a si mesma para justificar a partida de casa, e o abandono das regras — logo ela, operária-padrão aos 77 anos. Tereza precisa se colocar em movimento, seguindo em frente, embora desconheça qualquer local onde possa atracar. Prefere seguir as indicações pouco confiáveis de terceiros: quando lhe indicam uma cidade possivelmente interessante, para lá ela vai. A protagonista parte em busca de sua El Dorado, ainda que dispense o tesouro.
A noção do deslocamento enquanto meio e finalidade permite considerar O Último Azul enquanto road movie, ou boat movie, como têm chamado os membros da equipe. A ação se passa pelos rios da região amazônica, onde as leis, e o próprio tempo, parecem se organizar segundo regras particulares. Mascaro encara este local com certo encantamento, escapando felizmente ao fetiche. As possibilidades de fuga do real decorrem de mecanismos de fantasia assumidamente fictícios (a baba azul alucinógena do caracol), enquanto a rotina de barqueiros e pequenos comerciantes ganha um tratamento naturalista, minimalista, sem espetacularização nem exotismo. A mise en scène sabe muito bem quando pode extrapolar a verossimilhança (os personagens pingando o líquido azul diretamente na retina), e quando necessita fincar os pés no chão.
Por isso, surpreende no projeto o aspecto melancólico, contemplativo. Não demoramos a compreender que a condição de fugitiva da heroína constitui mera desculpa para retirá-la de certa invisibilidade social na qual se via confortavelmente instalada. Tereza encontra um barqueiro deprimido (Rodrigo Santoro), um pintor amigável e propenso aos excessos (Adanilo) e uma barqueira idosa, ainda mais velha do que ela, que conseguiu “comprar a sua liberdade” — momento em que nossa heroína descobre a capacidade de burlar, mediante pagamento, as regras do sistema. A compra da liberdade também estabelece evidente conexão com a alforria, em se tratando de uma mulher negra (Miriam Socarrás) que ensina o caminho das pedras à viajante.
Aos poucos, desenha-se um mosaico de pessoas abandonadas à própria sorte, apartadas de familiares, esposas, amigos. Mascaro foge tanto ao aspecto turístico da Região Norte quanto à denúncia da miséria: estes indivíduos ocupam uma situação crônica. Resta a impressão que, caso os encontrássemos anos antes, ou anos depois, estariam desempenhando exatamente as mesmas funções. Curioso princípio da imobilidade em meio a um road movie, ou de permanência em plena aventura. Por este motivo, o roteiro jamais promete enraizar sua mulher como forma de conclusão. Pelo contrário, quanto mais ela se adequa às águas, à natureza e às pessoas, mais livre e fluida se torna. Veremos um corpo leve, os cabelos ao vento, o sorriso espontâneo. Tereza se faz natureza.
Com O Último Azul, o diretor atinge um ponto de maturidade muito interessante na carreira, condensando todos os interesses, motivos narrativos e ferramentas de linguagem de suas obras precedentes de maneira orgânica, discreta, evitando que um elemento chame mais atenção que os demais. A impecável fotografia, a escolha da janela mais quadrada da imagem (em formato 3:2), a trilha sonora hipnótica, a discreta direção de arte (que foge à armadilha da decoração preciosista) constroem um conjunto de impressionante coesão, capaz de transformar momentos como a rinha de peixes ou o banho entre duas mulheres idosas em instantes banais do cotidiano.
A grandeza do longa-metragem reside nesta capacidade de olhar para o cotidiano com o encantamento de quem testemunha uma grandiosa jornada, e de converter a aventura em si numa espécie de pacificação dos sentidos. Denise Weinberg, magnífica no papel principal, evita os exageros e dispensa a tentação de sublinhar frases ou olhares. Compõe esta paisagem com uma entrega de difícil simplicidade, como poucas vezes se enxerga no cinema. Heroína involuntária de um périplo pelas águas, Tereza foge à condição trágica que a esperaria ao término de qualquer jornada exemplar. Ela insiste em constituir uma exceção.