É possível que o espectador médio descubra muitos dados novos a respeito dos dubladores brasileiros enquanto assiste a O Vozerio. Sabia que há palavras proibidas na dublagem de filmes? Já percebeu que, mesmo quando as falas originais mencionam palavrões, a versão brasileira precisa ser atenuada? Conhece os termos específicos do roteiro e direção de dublagem? Sabe como funcionam os cursos de formação de dubladores? Já parou para pensar nas transformações registradas ao longo das décadas? Estes elementos e muitos outros são esmiuçados durante as entrevistas.
Em especial, o longa-metragem adota uma visão corporativista e militante pró-dubladores. A partir de uma explicação inicial, de ordem da contextualização, mergulha numa visão da classe socioprofissional. O cineasta Igor Bastos começa a analisar aspectos nada lúdicos, muito mais próximos do direito: quanto recebem pelo trabalho? A remuneração tem evoluído? De que maneira se organizam em sindicatos, e sobre quais temas conversam nas reuniões anuais de dubladores? Em quais casos brigaram por reconhecimento, e quando foram boicotados ou perseguidos por empresários poderosos, com tendência a minimizar o papel de um dublador no sucesso do filme nacionalizado? Estamos falando, portanto, de operários da indústria audiovisual, além de artistas. Eles poderiam representar muitos outros setores deste mercado negligenciado pelo último governo.
A narrativa transmite com clareza o valor da dublagem no Brasil, sua evolução e a necessidade de reconhecimento profissional às pessoas que vivem desta arte ainda marginalizada no país.
O diretor conversa com um grupo bastante experiente, dotado de ampla ciência dos meandros da profissão. Ao invés de uma visão edulcorada, encorajadora, preferem encarar com franqueza os revezes deste ofício. Em alguns momentos, ocultam nomes ou desafetos dentro da corporação e das empresas. Em outras palavras, o amor de todos eles por este trabalho nunca os torna cegos à necessidade de melhorias. Adota-se um teor de denúncia e reivindicação, solicitando ao espectador, e a quem-desejar-possa, que se valorize, finalmente, a dedicação destes profissionais comprometidos.
“Eu não quero nada sensacionalista”. Num dos raros instantes em que se coloca em cena, Bastos esclarece a uma entrevistada (e ao espectador, por extensão) o intuito de realizar uma obra de conscientização, porém sem apontar dedos, nem transformá-la numa iniciativa justiceira e espetacular, típica das reportagens de gosto duvidoso na televisão vespertina. Ele alcança este objetivo sem dificuldade, fornecendo um painel informativo. A narrativa transmite com clareza o valor da dublagem no Brasil, sua evolução e a necessidade de reconhecimento profissional às pessoas que vivem desta arte ainda marginalizada no país.
Logo, no que diz respeito às precauções éticas e didáticas, O Vozerio atinge suas ambições. Bastos sabe conduzir as entrevistas de maneira libre, porém, condicionando os rumos para os temas que lhe interessam. Talvez obtenha um conjunto de falas de pouco volume ou contradição (as raríssimas discordâncias entre os entrevistados são explicitadas pela montagem), no entanto, reforça a impressão de um coletivo expressando-se em uníssono em nome de certos direitos, apesar das inevitáveis rusgas internas entre membros isolados.
Em contrapartida, no que diz respeito aos aspectos estéticos e puramente cinematográficos, o documentário produz um resultado acanhado. A estrutura do talking head intercalado com materiais de arquivo não traz nenhuma novidade, pelo contrário — aqui, as falas controlam a quase totalidade da experiência, deixando poucas brechas para a filmagem de congressos e aulas de dublagem. Ao contrário dos enquadramentos posados (às vezes até usando um over the shoulder do diretor na janela em scope), as filmagens mais livres, em eventos espontâneos com várias pessoas em cena, adotam uma câmera bastante tremida, incerta quanto aos objetivos da imagem.
Em especial, o projeto demonstra pouca disposição a captar a espontaneidade ou simplesmente a observar estes profissionais em ação. Fala-se sobre a dublagem incessantemente, da primeira à última cena — obtendo um conteúdo precioso, sem dúvida. No entanto, observa-se pouquíssimo da dublagem ocorrendo num dia a dia comum, nos estúdios. Para uma obra tão dedicada ao ofício, impressiona a pouca disposição a simplesmente contemplá-los em sua rotina e especificidades. Caso seguisse algumas dessas pessoas um, dois, cinco dias de um trabalho, poderia flagrar instantes preciosos de direção de dubladores, de inconvenientes com falas, de discordâncias sobre traduções.
Bastos, por sua vez, prefere enxergar o trabalho de dublador enquanto tema de estudo. Por isso, fala-se do ofício relatando invariavelmente casos passados, sobre os quais não possuímos imagens para corroborar. Evocam-se relações com diretores e empresários que se tornariam muito mais palpáveis caso pudéssemos vê-los em tela. A presença da câmera in loco, admirando e percebendo o ofício ao invés de refletir sobre ele a posteriori, poderia trazer a leveza e a naturalidade às quais o conjunto aspira. No final, os instantes destes profissionais dublando são curtos, e claramente afetados pela presença da câmera (ou encenados para ela, caso das aulas de dublagem).
Outros fatores mereceriam questionamento: a dublagem ainda é inteiramente efetuada no eixo Rio-São Paulo? O que pensam a respeito os trabalhadores de estados nordestinos, por exemplo? Como justificar a ausência de profissionais negros nas imagens? Isso seria uma ausência da própria classe? Ou talvez uma ausência de personagens negros a ser dublados? O que os dubladores-estrelas como Wendel Bezerra e Guilherme Briggs poderiam trazer à noção do dublador-autor, e por que estão ausentes do mosaico? Como justificar que o trabalho de vozes originais, no caso de animações brasileiras, nem sequer seja mencionado? Como a multiplicação de conteúdos dublados, graças à proliferação dos serviços de streaming, afetou a demanda, a qualificação e o trabalho dos dubladores?
Haveria muito mais a explorar neste campo e nas suas áreas anexas. Mesmo aspectos de ordem puramente estética e de linguagem poderiam ser questionados, a exemplo do desnível na qualidade de captação e tratamento de som e imagem. Em se tratando de um filme sobre a voz, algumas falas com eco, outras difíceis de compreender (a resposta de Sumára Louise, quando o cineasta aparece em cena) e outras tomadas pelo barulho de conversas no saguão (a conversa final com Priscila Amorim) destoam negativamente. O mesmo pode ser dito de algumas falas com luz estourada, e da cena final, com o grande Sílvio Navas deitado numa cama. A imagem do homem claramente debilitado também pode despertar questionamentos morais e éticos. Seria uma boa maneira de homenageá-lo e relembrar sua importância?
No entanto, o longa-metragem possui o mérito de escolher um ângulo de ataque muito preciso (o corporativismo), explorando-o em profundidade, e com coerência. A duração relativamente extensa para um documentário independente também atesta a vontade de incluir o máximo de pontos, vozes e argumentos dentro do foco escolhido. Longe de esgotar o tema ou de promover um painel amplo a respeito da dublagem, o filme cumpre sobretudo a função de jogar luz ao déficit de atenção despendido a estes trabalhadores. Ele funciona como uma porta de entrada à discussão que poderia, e que desejaríamos, ver continuar.