Paul B. Preciado, filósofo e pesquisador em gênero e sexualidade, foi convidado a desenvolver um filme a respeito de sua vida enquanto homem transexual. Ele recusou a oferta, alegando que Virginia Woolf já teria dito tudo o que ele gostaria de abordar no romance Orlando, de 1928. Na trama, um aristocrata inglês acorda no corpo de uma mulher durante uma viagem à Turquia. Ao longo dos próximos séculos, o herói/heroína aprende a viver sua identidade feminina conforme as sociedades se transformam. Preciado recebeu a contraproposta, então, de elaborar a sua própria versão cinematográfica de Orlando. Aceitou.
Orlando, Minha Biografia Política se apropria de maneira tão pessoal quanto livre do livro original. Dezenas de pessoas transexuais — masculinas, femininas ou não-binárias, jovens ou maduras, brancas e negras, francesas e estrangeiras — encarnam Orlando, com a ajuda de simples babados no pescoço, aludindo ao vestuário do século XVIII. Devido à importância dos nomes, sobretudo para pessoas trans, apresentam-se formalmente ao espectador e declaram interpretar o personagem-título de Virginia Woolf.
Logo, o projeto faz do artifício sua linguagem voluntária e assumida. Estamos no terreno da performance, do happening, ao invés de uma encenação clássica a respeito do texto subversivo de aproximadamente cem anos atrás. O cineasta permite o kitsch, o farsesco e a aparência de improviso, convertendo a ficção num meio — jamais uma finalidade. Assim, conforme o elenco oferece sua interpretação dos trechos literários, os cenários são arrumados diante dos nossos olhos, e a equipe de arte aparece para maquiar e pentear as protagonistas. Nunca se busca a aparência de mergulhar, de fato, em séculos atrás.
“A primeira metamorfose revolucionária é a poesia, a capacidade de mudar o nome das coisas. A segunda é o amor”. O filme defende o direito às mudanças, em dimensão superior ao gênero e à sexualidade.
Diante das câmeras, olhando diretamente ao espectador, eles, elas e elus discorrem a respeito de sua relação com o gênero, o sexo e a sexualidade. Na maior parte dos casos, não se consideram mulheres por completo, nem homens por completo, mas uma subjetividade distinta, em construção, que ainda permite se modificar e encontrar num futuro a denominação adequada — ou, talvez, denominação nenhuma. Atacam o mundo binário e normativo, assim como a necessidade de se enquadrar em padrões incapazes de contemplar toda a sociedade.
Ora, na proposta de Preciado, os depoentes-personagens passam da encenação à confissão íntima num simples corte da montagem. Às vezes, durante um único plano, param de falar de si mesmos e começam a evocar viagens a Constantinopla e fármacos caseiros baseadas em gordura animal — quando percebemos que a narrativa voltou à matriz literária. Então, durante algumas leituras de Orlando, as personagens mencionam antidepressivos e shows de striptease via webcam. O linguajar clássico se funde às referências contemporâneas.
Definido pelo circuito exibidor e de festivais como um “híbrido entre ficção e documentário”, Orlando, Minha Biografia Política vai além destas categorias. Inclui trechos experimentais, alegóricos, teatrais, musicais. Uma interação dramática, claramente roteirizada, se encerra com um número onde todos os personagens dançam e cantam contra a patologização dos corpos trans. A discussão bastante séria e documental acerca da identidade e da documentação de pessoas transexuais culmina na operação de redesignação de gênero, operada sobre uma cópia do livro de Woolf. O romance é colocado na maca de hospital, enquanto os médicos utilizam babados brancos em torno do pescoço.
O longa-metragem aponta a questões essenciais da reflexão, sem cair no didatismo nem na simples denúncia contra a LGBTQfobia. Enquanto narrador em off (porém aparecendo, pontualmente, nas imagens), o diretor discute a relação preconceituosa do meio médico com indivíduos trans, a luta pelo direito à redesignação de gênero e à obtenção de novos papéis de identidade, respeitando o gênero com o qual as personagens se identificam. Preciado descreve o R.G. como “ficção política”, “prótese administrativa”. Nos devaneios lúdicos e cômicos, concebe a criação de uma documentação nacional não-binária. Afinal, como um juiz ou médico saberia mais a respeito da identidade de uma pessoa do que ela mesma?
Orlando, Minha Biografia Política defende as mudanças, as metamorfoses, a abertura à diferença. Poeticamente, prega o direito a “fazer de sua vida uma obra de arte”, visto que o ato de transicionar não representaria uma passagem entre masculino e feminino, porém uma viagem de investigação capaz de ir ultrapassar estas denominações. Discute a violência sistêmica, afetando indivíduos transexuais todos os dias, para além de agressões mais explícitas e midiatizadas. “É preciso sobreviver à violência para contar a nossa história. É preciso contar a nossa história para sobreviver à violência”.
Estas e outras frases, claras, potentes e, ao mesmo tempo, líricas, dominam a banda sonora. O narrador nunca explica aquilo que vemos nas imagens, evitando a redundância pedagógica. Enquanto os personagens falam de si e de Virgina Woolf, Preciado reflete acerca do mundo, da política, das prisões em que a sociedade insiste em colocar subjetividades diferentes da norma. Raríssimos filmes “híbridos” conseguem ser tão acessíveis, e pouquíssimas obras misturando tantos personagens, estilos e linguagens alcançam tamanha coerência e coesão. O autor parece discorrer sempre sobre o mesmo tema, apesar de surpreender a cada momento por meio de imagens e construções impensáveis.
Trata-se de uma construção inesperadamente leve para um tema tão complexo, e que ainda serve, de fato, como uma análise esmiuçada da obra e da vida de Virginia Woolf, percebidas enquanto dimensões inseparáveis. Preciado chega a cravar que a autora seria lésbica, talvez não-binária, mesmo trans. “A primeira metamorfose revolucionária é a poesia, a capacidade de mudar o nome das coisas. A segunda é o amor”. O filme defende o direito às mudanças, em dimensão superior ao gênero e à sexualidade.
Prega a pesquisa de si, a adequação de subjetividades a tantas possibilidades, e à eterna transformação de acordo com as circunstâncias. Assim, rompe com a identificação enquanto forma estável e perene de estar no mundo. Por esta definição, pessoas trans ocupariam o espaço entre conceitos e vivências, e felizes de permanecer ali. Ao invés de tentarem uma assimilação ao centro, reivindicariam sua maneira e seu direito de viver à margem. O resultado é um caleidoscópio de transições entre personagens, entre ficção e documentário, entre discussão filosófica e encenação brincalhona. O cinema do autor, compreensivelmente, se encontra também num espaço entre definições.