Orlando, Minha Biografia Política (2023)

A metamorfose

título original (ano)
Orlando, Ma Biographie Politique (2024)
país
França
Linguagem
Documentário, Ficção
duração
98 minutos
direção
Paul B. Preciado
com
Emma Avena, Amir Baylly, Oscar S. Miller, Janis Sahraqui, Ruben Rizza, Koriangelis Branws, Victor Marzouk, Elios Levy, Paul B. Preciado, Virginie Despentes, Frédéric Pierrot, Le Filip
visto em
Cinemas

Paul B. Preciado, filósofo e pesquisador em gênero e sexualidade, foi convidado a desenvolver um filme a respeito de sua vida enquanto homem transexual. Ele recusou a oferta, alegando que Virginia Woolf já teria dito tudo o que ele gostaria de abordar no romance Orlando, de 1928. Na trama, um aristocrata inglês acorda no corpo de uma mulher durante uma viagem à Turquia. Ao longo dos próximos séculos, o herói/heroína aprende a viver sua identidade feminina conforme as sociedades se transformam. Preciado recebeu a contraproposta, então, de elaborar a sua própria versão cinematográfica de Orlando. Aceitou.

Orlando, Minha Biografia Política se apropria de maneira tão pessoal quanto livre do livro original. Dezenas de pessoas transexuais — masculinas, femininas ou não-binárias, jovens ou maduras, brancas e negras, francesas e estrangeiras — encarnam Orlando, com a ajuda de simples babados no pescoço, aludindo ao vestuário do século XVIII. Devido à importância dos nomes, sobretudo para pessoas trans, apresentam-se formalmente ao espectador e declaram interpretar o personagem-título de Virginia Woolf.

Logo, o projeto faz do artifício sua linguagem voluntária e assumida. Estamos no terreno da performance, do happening, ao invés de uma encenação clássica a respeito do texto subversivo de aproximadamente cem anos atrás. O cineasta permite o kitsch, o farsesco e a aparência de improviso, convertendo a ficção num meio — jamais uma finalidade. Assim, conforme o elenco oferece sua interpretação dos trechos literários, os cenários são arrumados diante dos nossos olhos, e a equipe de arte aparece para maquiar e pentear as protagonistas. Nunca se busca a aparência de mergulhar, de fato, em séculos atrás. 

A primeira metamorfose revolucionária é a poesia, a capacidade de mudar o nome das coisas. A segunda é o amor”. O filme defende o direito às mudanças, em dimensão superior ao gênero e à sexualidade. 

Diante das câmeras, olhando diretamente ao espectador, eles, elas e elus discorrem a respeito de sua relação com o gênero, o sexo e a sexualidade. Na maior parte dos casos, não se consideram mulheres por completo, nem homens por completo, mas uma subjetividade distinta, em construção, que ainda permite se modificar e encontrar num futuro a denominação adequada — ou, talvez, denominação nenhuma. Atacam o mundo binário e normativo, assim como a necessidade de se enquadrar em padrões incapazes de contemplar toda a sociedade.

Ora, na proposta de Preciado, os depoentes-personagens passam da encenação à confissão íntima num simples corte da montagem. Às vezes, durante um único plano, param de falar de si mesmos e começam a evocar viagens a Constantinopla e fármacos caseiros baseadas em gordura animal — quando percebemos que a narrativa voltou à matriz literária. Então, durante algumas leituras de Orlando, as personagens mencionam antidepressivos e shows de striptease via webcam. O linguajar clássico se funde às referências contemporâneas.

Definido pelo circuito exibidor e de festivais como um “híbrido entre ficção e documentário”, Orlando, Minha Biografia Política vai além destas categorias. Inclui trechos experimentais, alegóricos, teatrais, musicais. Uma interação dramática, claramente roteirizada, se encerra com um número onde todos os personagens dançam e cantam contra a patologização dos corpos trans. A discussão bastante séria e documental acerca da identidade e da documentação de pessoas transexuais culmina na operação de redesignação de gênero, operada sobre uma cópia do livro de Woolf. O romance é colocado na maca de hospital, enquanto os médicos utilizam babados brancos em torno do pescoço.

O longa-metragem aponta a questões essenciais da reflexão, sem cair no didatismo nem na simples denúncia contra a LGBTQfobia. Enquanto narrador em off (porém aparecendo, pontualmente, nas imagens), o diretor discute a relação preconceituosa do meio médico com indivíduos trans, a luta pelo direito à redesignação de gênero e à obtenção de novos papéis de identidade, respeitando o gênero com o qual as personagens se identificam. Preciado descreve o R.G. como “ficção política”, “prótese administrativa”. Nos devaneios lúdicos e cômicos, concebe a criação de uma documentação nacional não-binária. Afinal, como um juiz ou médico saberia mais a respeito da identidade de uma pessoa do que ela mesma?

Orlando, Minha Biografia Política defende as mudanças, as metamorfoses, a abertura à diferença. Poeticamente, prega o direito a “fazer de sua vida uma obra de arte”, visto que o ato de transicionar não representaria uma passagem entre masculino e feminino, porém uma viagem de investigação capaz de ir ultrapassar estas denominações. Discute a violência sistêmica, afetando indivíduos transexuais todos os dias, para além de agressões mais explícitas e midiatizadas. “É preciso sobreviver à violência para contar a nossa história. É preciso contar a nossa história para sobreviver à violência”

Estas e outras frases, claras, potentes e, ao mesmo tempo, líricas, dominam a banda sonora. O narrador nunca explica aquilo que vemos nas imagens, evitando a redundância pedagógica. Enquanto os personagens falam de si e de Virgina Woolf, Preciado reflete acerca do mundo, da política, das prisões em que a sociedade insiste em colocar subjetividades diferentes da norma. Raríssimos filmes “híbridos” conseguem ser tão acessíveis, e pouquíssimas obras misturando tantos personagens, estilos e linguagens alcançam tamanha coerência e coesão. O autor parece discorrer sempre sobre o mesmo tema, apesar de surpreender a cada momento por meio de imagens e construções impensáveis.

Trata-se de uma construção inesperadamente leve para um tema tão complexo, e que ainda serve, de fato, como uma análise esmiuçada da obra e da vida de Virginia Woolf, percebidas enquanto dimensões inseparáveis. Preciado chega a cravar que a autora seria lésbica, talvez não-binária, mesmo trans. “A primeira metamorfose revolucionária é a poesia, a capacidade de mudar o nome das coisas. A segunda é o amor”. O filme defende o direito às mudanças, em dimensão superior ao gênero e à sexualidade. 

Prega a pesquisa de si, a adequação de subjetividades a tantas possibilidades, e à eterna transformação de acordo com as circunstâncias. Assim, rompe com a identificação enquanto forma estável e perene de estar no mundo. Por esta definição, pessoas trans ocupariam o espaço entre conceitos e vivências, e felizes de permanecer ali. Ao invés de tentarem uma assimilação ao centro, reivindicariam sua maneira e seu direito de viver à margem. O resultado é um caleidoscópio de transições entre personagens, entre ficção e documentário, entre discussão filosófica e encenação brincalhona. O cinema do autor, compreensivelmente, se encontra também num espaço entre definições.

Orlando, Minha Biografia Política (2023)
10
Nota 10/10

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