Grande Otelo, sentado num sofá. A câmera está distante; não há sons ao redor. O ator possui uma expressão melancólica. Percebe a presença do dispositivo à sua frente, embora esteja absorto em pensamentos. Esta dificilmente seria a primeira imagem evocada pelo público a respeito de um dos maiores humoristas do audiovisual brasileiro. No entanto, o cineasta Lucas H. Rossi privilegia a perspectiva de um intelectual, um homem repleto de facetas e de personas criadas, de maneira profissional e controlada, para ofertar ao público.
Em entrevistas durante o Fest Aruanda 2023, o autor confessou ter cogitado a elaboração de um documentário tradicional, com cabeças falantes citando e elogiando a carreira do protagonista. Felizmente, abandonou esta estrutura desgastada, e pouco instigante, de certo cinema brasileiro. Aceitou o desafio muito mais potente de abraçar 300 horas de material de arquivo, muitos deles raríssimos, estimando que as entrevistas e performances do ator seriam suficientes para representá-lo.
Por isso, escutamos da boca do próprio artista a sua infância, quando foi entregue pela mãe a uma família branca e rica. Descobrimos por sua voz a narrativa de um grave acidente familiar, e também sua percepção do racismo, da falta de oportunidades para um homem negro na metade do século XX. Em registros próximos do fim da vida, ele disserta com surpreendente eloquência e senso de autocrítica a respeito de seu percurso. Afirma ter participado de projetos dos quais não se orgulha, porém, na condição de primeiro ator negro com papel de destaque na cinematografia brasileira, precisou fazer concessões.
O longa-metragem compreende que Otelo seria a pessoa ideal para discorrer não apenas sobre si, a Atlântida e o racismo, mas para pensar imagens e a sociedade num sentido mais amplo.
Otelo tampouco se desculpa, ou se arrepende. Fez o que precisava, quando foi necessário. A famosa cena de Romeu e Julieta, em Carnaval no Fogo (1949), de Watson Macedo, foi encenada imediatamente após descobrir a morte trágica da esposa e da filha. Enxugou as lágrimas e se dirigiu ao set de filmagem. Questionava a diferença de salário em relação aos atores brancos, além do tratamento favorável a Oscarito por parte da mídia. Suas pautas e reivindicações se provam incrivelmente contemporâneas, embora tenha falecido nos anos 1990.
O diretor efetua, portanto, uma obra de nossos tempos, utilizando unicamente materiais de arquivo de décadas atrás. Fugindo às necessidades autoimpostas pelo registro tradicional (a linearidade, a finalidade, a hagiografia, as relações de causa e consequência), decide que não precisa explicar Otelo, nem saturar a experiência de fatos, datas, nomes de filmes e artistas com quem trabalhou. Privilegia a subjetividade deste grande homem, seus pensamentos, sentimentos, ordenados por meio de uma estrutura poética e autoral.
A montagem, justamente, se mostra um dos trunfos da obra. Não pelo fato de ter trabalhado muito — a crítica de cinema costuma valorizar a montagem a partir de materiais de arquivo pela impressão de dificuldade —, mas por conseguir estabelecer conexões metafóricas, provocadoras, incisivas. Na função de montadores, Willem Dias e o cineasta sabem quando explorar o som das falas, e quando apostar apenas na imagem silenciosa. Quando utilizar longas falas e respostas, e quanto deixar uma tela preta para respeito e reflexão.
Uma imagem de Macunaíma (1969) se costura com Fitzcarraldo (1982), de modo orgânico. Uma pergunta incômoda no programa de televisão Roda Viva se aproxima das piadas racistas que ainda vigoravam no audiovisual da época, no intuito de divertir plateias brancas a partir da ridicularização dos atores negros. Lucas H. Rossi dos Santos nunca precisa afirmar que havia racismo; ele o mostra. Não precisa de algum depoimento de terceiros sugerindo o aspecto taciturno, e um tanto deprimido, de Otelo, pois as imagens o revelam sozinhas. Não precisa elencar sucessos, nem dificuldades, que serão percebidos ou comentados pelo protagonista.
“Em Macunaíma, não precisei fazer tanta careta”, comemora o ator, que enxerga nesta obra popular a capacidade rara de unir as duas pontas do espectro cinematográfico brasileiro da época: a chanchada e o Cinema Novo. “A chanchada era a expressão de uma época de simplicidade”, determina. O longa-metragem compreende que Otelo seria a pessoa ideal para discorrer não apenas sobre si, a Atlântida e o racismo, mas para pensar imagens e a sociedade num sentido mais amplo.
Em consequência, o documentário respeita o homem para além das passagens marcantes de seu trajeto. Pelo contrário, aparenta buscar precisamente os instantes menos conhecidos, os fragmentos de intimidade, de solidão ou ponderação. Para o nosso alívio enquanto espectadores, o autor evita a armadilha de filme Wikipédia — quem estiver interessado, poderá encontrar informações pontuais de sua filmografia pela Internet e pelos livros. Aqui, encontrará aquilo que cabe essencialmente ao cinema: a construção de imagens e sons, e os sentidos elaborados a partir da aproximação entre cenas e sequências não concebidas para existirem juntas.
Alguns estudos de crítica de cinema sugerem que a função do crítico seria de ir contra o sentido da obra, forçá-la no caminho oposto ao que foi criado. Em outras palavras, destacar o discurso político e moral por trás da obra que se pretende puro entretenimento, ou perceber o valor estético de alguma produção voltada ao utilitarismo de uma pauta. Caberia ao crítico completar o sentido da obra e expandir a comunicação, ao apontar o dedo para a manga direita do mágico enquanto o braço esquerdo apresenta uma carta ao público.
Othelo, o Grande adota uma estratégia parecida do ponto de vista da mise en scène. Onde se esperaria sensacionalismo e diversão, oferece um tom pesaroso, intricado, no qual o humor esconde uma tristeza crônica por trás de cada gesto. Ao invés de um resumo do ator, ele expande o retrato a partir do humanismo da direção. A carreira no cinema, no teatro e na televisão está presente, é claro, porém na intenção de destacar a maneira como Sebastião Bernardes de Souza Prata se sentiu em cada um destes momentos, e quais digressões retirou das experiências.
Por fim, a narrativa se interessa menos por aquilo que o personagem fez, ou pelo que fizeram a ele, do que pelo que pensa, sente, acha, acredita. Finalmente, temos um grande documentário, capaz de valorizar psicologia e conhecimento de seu protagonista, em oposição a homenageá-lo por sua simples existência. O diretor não se contenta com a constatação de que este bom ator é, de fato, bom. Investiga o que houve por trás destas conquistas, contextualizando acontecimentos, filmes e programas de televisão.
O documentário supera, assim, a vocação da reportagem, do mero lembrete do ocorrido, do ça a été teorizado por Barthes. Partindo unicamente de imagens criadas por terceiros, Lucas H. Rossi dos Santos cria junto ao artista, com ele. A montagem de sons e imagens propõe uma dança entre ator e personagem, entre homem e persona. Othelo, o Grande nunca se resume a um filme sobre Grande Otelo. Trata-se de uma obra a partir dele, em decorrência dele, na qual os vários pioneirismos do intérprete e cantor negro se convertem em ponto de partida para reflexões amplas acerca da sociedade. Otelo é ponto de partida, não finalidade.
“Por enquanto, a minha política é fazer rir”, declara o ator. O trecho mais importante desta afirmação seria precisamente o início: por enquanto. Talvez depois, não seja mais. Existe um senso de devir, de transformação, a partir deste homem. Em oposição aos “filmes definitivos” a respeito de alguém, destinados a revelar segredos e esclarecer dúvidas, este projeto cuida das ambiguidades e as devolve ao espectador.