A primeira impressão diante de Pacificado é bastante positiva. Em se tratando de uma obra a respeito da criminalidade nos morros cariocas, a mente do espectador pode se deslocar imediatamente para os casos mais emblemáticos da cinematografia nacional: Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) e seus derivados. Nestes casos, a violência infligida aos pobres era transformada em espetáculo para as massas, especialmente de classe média (aquela que compra ingressos para sessões na sala de cinema).
Neste período, Zé Pequeno e Capitão Nascimento oscilaram da figura de anti-heróis àquela de heróis sanguinários e sedentos pelo justiçamento. Por isso, o retrato da marginalidade no drama dirigido por Paxton Winters provoca certo alívio: as agressões e pressões sofridas pelos moradores do morro nunca se convertem em show. Esqueça o Bope subindo a favela ao som de rap; as frases de efeito antes de atirar; as torturas acompanhadas por risos de escárnio. O olhar preserva uma postura plácida, contemplativa.
A perspectiva do espectador se identifica com aquela de Tati (Cássia Gil), garota de 13 anos de idade, nascida e crescida no Morro dos Prazeres. Esta escolha determina o resto da narrativa: por um lado, a menina está acostumada ao mundo de drogas, tiros e invasões policiais, razão pela qual nenhuma imagem carrega um teor de choque ou urgência. Infelizmente, estas ações constituem a rotina dela. Em contrapartida, a menina ainda tem muito a aprender a respeito do mundo adulto. Seus desafios dizem respeito ao conflito de gerações e à descoberta da própria autonomia, mais do que à condição socioeconômica em que se insere.
Em consequência, o drama promove um posicionamento local, de dentro do morro — algo benéfico e raro no subgrupo de “filmes de favela”. Em geral, opta-se pelo policial pacificador, pelo morador da Zona Sul que se apaixona por alguma garota da comunidade, ou por políticos lidando com a gestão da cidade. Finalmente, entrega-se o discurso acerca da favela aos personagens que ali habitam. Eles deixam de ser tratados como vítimas, ou como o “outro”, tornando-se sujeitos dotados de voz e protagonismo.
Apesar das inúmeras qualidades, Pacificado preserva uma associação direta entre pobreza e criminalidade. Os personagens são vistos exclusivamente por sua relação com o consumo ou tráfico de drogas.
A estética acompanha o teor melancólico da observação. A diretora de fotografia Laura Merians aposta numa câmera-cúmplice, sempre colada ao corpo e ao rosto dos protagonistas, enquadrados em contraluzes coloridos, sob a iluminação dura dos postes, ou a luz forte das festas. O passeio pela Lapa e pela praia ocorre numa noite triste, quando a menina se converte em mera silhueta em meio ao espaço vazio. Escolhem-se as luzes azuladas do dia nascendo, o escuro profundo da noite, as vielas obscuras entre casas. Há um aspecto de fim de festa, destinado a representar o período pós-Jogos Olímpicos, quando as UPPs se retiravam do local.
Apesar das inúmeras qualidades, alguns aspectos prejudicam a experiência. Pacificado preserva uma associação direta entre pobreza e criminalidade. Os personagens são vistos única e exclusivamente por sua relação com o consumo ou tráfico de drogas: Jaca (Bukassa Kabengele), recém-saído da prisão, é tratado apenas como ex-líder do morro. Os planos da pizzaria soam secundários, quase ilusórios: o empreendimento se concretiza do dia para a noite, e as sequências no local pautam-se pela presença de traficantes ameaçando a paz.
Andrea (Débora Nascimento), antiga parceira dele, ganha a descrição de dependente química, e a partir deste momento, será associada o tempo inteiro ao consumo de drogas. Dudu (Raphael Logan) participa somente de cenas associadas à Boca de Fumo. Passada a cena de abertura, quando dança com as amigas, Tati testemunha as drogas da mãe, o tráfico do pai e do tio, os roubos com a amiga, a violência dos policiais. Os líderes de facções contrárias ocupam mais tempo de tela, já os coadjuvantes servem para ressaltar derivas da lei (caso de Pico, Karla, Tu Pac).
Ninguém possui sonhos concretos para o futuro, ou objetivos profissionais para além da pequena pizzaria. Eles não escutam música, não amam, não expressam suas dores, não conversam com os amigos à noite. Não trabalham fora do morro, nem mantêm contato com os bairros ao redor. Aqui, o morro se converte numa bolha autossuficiente, separada dos bairros nobres do Rio de Janeiro. Neste roteiro, todos os homens são traficantes, ou conectados com estes, e as meninas são abusadas, deixadas, maltratadas, engravidando aos 13 anos. Mesmo as personagens que nunca tínhamos visto em qualquer relacionamento íntimo aparecem grávidas, repentinamente.
Esta parece ser a ordem das coisas, o destino inevitável dos personagens. Embora evite o sadismo do mundo cão, o projeto não foge de outra armadilha do olhar às classes desfavorecidas: o conformismo. Paira um olhar fatalista, paternalista, para quem a situação sempre foi e sempre será assim. Nada pode mudar o dia a dia de tiros e acertos de conta sangrentos. Os personagens choram poucas lágrimas e, no dia seguinte, voltam às rotinas. O irmão morto é abraçado tal uma Pietá, e depois, a vida segue. Uma mãe é presa, deixando a filha sem cuidados, mas fazer o quê?
Logo, o discurso nunca é capaz de se indignar, de criticar, de pensar em alternativas para o futuro. A narrativa limita-se a constatar o problema, evitando investigar as origens, as consequências a longo prazo, as possíveis saídas ou o envolvimento das instituições nesta situação. A polícia tem participação pequena; os políticos estão ausentes; a igreja é quase retirada de cena; as escolas inexistem. Os personagens estão deixados a si mesmos, e o filme observa esta situação com certa desafetação. A narrativa termina, literalmente, com personagens admirando placidamente um tiroteio.
Isso não significa que Pacificado seja desprovido de momentos fortes. Algumas atuações demonstram o potencial humanista desta abordagem. Bukassa Kabengele, em particular, devora o texto e também os colegas de cena, roubando toda e qualquer cena em que apareça. O talento do intérprete com as expressões, a voz e o corpo é impressionante. Léa Garcia e Raphael Logan também demonstram uma compreensão do filme enquanto drama. Infelizmente, nem todos os atores e atrizes os acompanham em nível semelhante.
A desenvoltura notável de Kabengele acaba por ressaltar o desnível entre seu trabalho e aquele de determinados colegas, ainda presos num registro de atuação próximo do filão Tropa de Elite. Cássia Gil também oferece um corpo presente, uma espécie de composição crua e sem julgamentos — ou ainda sem intelectualização, algo que colabora ao estilo naturalista da direção. Não por acaso, as cenas com a bisavó e com o pai se mostram as melhores da narrativa; enquanto a tortura praticada por líderes do morro, e os close-ups no rosto da mulher dependente de drogas revelam formas menos interessantes, porque óbvias e previsíveis, de composição de personagens.
O drama se encerra como um projeto crepuscular, etéreo. Sem objetivos muito definidos, os personagens perambulam por aquele espaço, cruzam-se por acaso entre as vielas. Acontecimentos graves adquirem ar inconsequente (o rosto cortado, a prisão, a gravidez), razão pela qual nenhum fato aparenta importar de fato, ou trazer consequências marcantes ao futuro. Sofre-se um tanto, chora-se de vez em quando, cansa-se sempre. Mas as coisas sempre foram assim, não? Há um aspecto despolitizante nesta abordagem, que acende (mais) um sinal vermelho em nossa representação cinematográfica das comunidades.