Pacifiction (2022)

Conspiração nas ilhas

título original (ano)
Tournement Sur les Îles (2022)
país
França, Espanha, Alemanha, Portugal
gênero
Drama, Suspense
duração
162 minutos
direção
Albert Serra
elenco
Benoît Magimel, Sergi López, Pahoa Mahagafanau, Cécile Guilbert, Matahi Pambrun, Marc Susini, Alexandre Melo, Montse Triola, Michael Vautor, Cécile Guilbert, Lluís Serrat, Cyrus Arai
visto em
Cinemas

Algo muito grave ocorre numa ilha da Polinésia Francesa. Começam a circular rumores sobre o retorno de testes nucleares no local. O alto comissário De Roller (Benoît Magimel) avista, de longe, a chegada de possíveis submarinos. Algumas garotas são avistadas pegando balsas de madrugada, mar não voltam mais. Ondas gigantescas surgem no horizonte. Em conversa com o prefeito, nota-se a presença de um esquema desonesto dos políticos para se manterem no poder. No principal hotel da região, chega um estrangeiro, trazendo mensagens secretas e estabelecendo conversas particulares. Um dia, seu passaporte diplomático desaparece.

Há material suficiente em Pacifiction para rechear um suspense de Michael Mann, ou uma trama de espionagem eletrizante, nos moldes de Paul Greengrass. A ação não para, e a tensão se alimenta de novos indícios a cada momento. No entanto, o espanhol Albert Serra utiliza esta premissa para construir um drama letárgico, onírico, sensual. Imagine uma produção de ação filmada com a luz, o ritmo e as interações de um suspense erótico dos anos 1990.

Isso significa que cada conversa sustenta o caráter simultâneo de flerte e ameaça. De Roller marca uma reunião com Shannah (Pahoa Mahagafanau), gerente do hotel, como quem busca sua amizade sincera, mas também uma aproximação amorosa. Ao mesmo tempo, torna-se claro que, se ela não aceitar, estará em perigo. Quando tenta obter informações com o ambíguo Almirante (Marc Susini), os homens falam em tom baixo, olham-se nos olhos, admiram os corpos de belos homens e mulheres pelos bares. Aparentam ter chegado a um acordo. Ao final da noite, na hora de partir, o político dispara um “Que grande imbecil!” em relação ao outro.

Serra opera numa fascinante disposição labiríntica do tempo e do espaço. […] As ameaças podem constituir um delírio, um distanciamento progressivo do real rumo à alucinação.

Aqui, o espectador tem acesso onipresente aos bares, hotéis, ruas, interiores de quartos, casas e carros. Apesar de vermos tudo, compreendemos cada vez menos o que ocorre ao certo neste local de tramoias tranquilas, silenciosas, revestidas da aparência de naturalidade. Todos os diálogos constituem reuniões de negócios dissimuladas, durante as quais se encomenda a morte ou o afastamento permanente de pessoas indesejadas por meias-palavras, com um sorriso na boca. A corrupção adquire um caráter assustadoramente institucional.

Deste modo, conflitos familiares adquirem uma atmosfera e um tratamento completamente distintos daquele que o cinema de ação norte-americano lhe tem oferecido. A cena inicial numa casa noturna transmite esta impressão de maneira exemplar. Há policiais em cena, embora não aparentem buscar ninguém ao certo. O ambiente é levemente subexposto, porém multicolorido, num tom rosa-alaranjado que contamina a produção inteira. Ao invés da nitidez elevada do digital contemporâneo, as imagens possuem os contornos borrados, aproveitando ao máximo a granulação, como numa lembrança em que os detalhes se perderam. Os personagens agem de maneira parcimoniosa, estratégica, a exemplo de animais selvagens buscando suas próximas presas.

Pacifiction possui a aparência de um filme inteiramente em câmera lenta. Isso poderia soar tedioso, mas não o é. Pelo contrário, Serra trabalha com uma atmosfera inebriante, porque cada silêncio está repleto de tensões, insinuações e subentendidos. Há ameaças de morte, sugestões sexuais e negociações mafiosas suficientes para espantar qualquer aspecto de inação. Ora, o diretor prefere desacelerar aquilo que normalmente se traduz em urgência, privilegiando a opacidade à claridade. Na maioria das produções do gênero, plantam-se dúvidas a princípio, até o desfecho trazer a verdade, a descoberta dos verdadeiros culpados e a punição por seus atos.

Nesta trama, em contrapartida, inexistem mocinhos e vilões, ou algozes e ingênuos. Todos se utilizam de todos, de maneira cíclica e ininterrupta. Não há nenhum segredo a ser desvendado: o roteiro prefere manter três ou quatro sugestões em paralelo, ao invés de apontar a um caminho único. Ao mesmo tempo, a estrutura foge ao caráter extraordinário da ação: mesmo com o anúncio de possíveis ataques nucleares, os almoços, jantas e coquetéis no bar sustentam um teor rotineiro, como se as intimidações ocorressem ali diariamente, e não chocassem mais ninguém.

O tempo parece não passar nunca aos personagens, embora os indícios de crimes e mortes se multipliquem no horizonte. De Roller veste a mesma roupa, dia após dia, assim como sua querida Shannah, e o Almirante uniformizado. Algo similar ocorre com o extravagante e cafona Morton (Sergi López), que comanda o Bar Paradise, e com Matahi (Matahi Pambrun), jovem líder sindical que se opõe ao protagonista. Os dias se passam, mas continuam idênticos. As figuras saem de um estabelecimento comercial para encontrarem exatamente as mesmas figuras no local ao lado.

Serra opera numa fascinante disposição labiríntica do tempo e do espaço. As pessoas se deslocam o tempo inteiro, sem saírem do lugar. Prometem ajudas ou ajustes de contas (“Me avisa se precisar de alguma coisa. Será um prazer ajudá-lo”, repete De Roller a qualquer um que cruze seu caminho), ainda que nenhum apoio se concretize. Os perigos soam maiores, mais violentos, mais eróticos, mas jamais se exteriorizam de fato na narrativa. Os bailarinos se preparam para um show exótico, misturando corpos torneados e aves selvagens, ainda que a apresentação, em si, permaneça oculta. “Minha única crítica é que falta um pouco de violência”, comenta o protagonista. Ele não está falando apenas da dança polinésia.

Pacifiction opera num registro de latência. Ele prefere segurar a explosão, o clímax sexual e narrativo, embora sobrecarregue a jornada de estímulos letais e eróticos. O diretor enquadra seis, sete, dez pessoas no mesmo plano, numa geografia impressionante de rostos e corpos. Enquanto De Roller e o Almirante conversam em primeiro plano, há Morton num segundo plano, em perfil, a escritora Francesca (Montse Triola) logo atrás, em outra pose, e Shannah ao fundo. Com um leve movimento de câmera, descobrimos outras figuras importantes, presentes logo ao lado. 

A jornada sustenta um caráter obsessivo, paranoico, no qual tamanhas intimidações podem constituir um delírio, um distanciamento progressivo do real rumo à alucinação. Cria-se uma claustrofobia a céu aberto: os personagens se devoram, sabem disso, e deixam-se devorar. É difícil estabelecer quem seria a presa ou o predador neste cenário de trocas constantes de poder. Mesmo que acompanhemos as ações do Comissário, ignoramos seu ponto de vista, e desconhecemos os próximos passos, ou objetivos a longo prazo. 

O olhar do espectador se mantém a uma distância segura das figuras em cena, permitindo uma avaliação crítica, de estranhamento. Paira a sensação de testemunharmos os crimes de terceiros em segredo, como se a trama não fosse feita para nós, para a nossa diversão, mas apesar de nós, do nosso acesso voyeur e cúmplice. Ao final, a atmosfera se traduz num sonho inebriante, numa letargia dos sentidos. 

A morte, a corrupção, o imperialismo francês no sudeste asiático se convertem numa dança sensual e exploradora, tão grosseira quanto natural, tão criminosa quanto socialmente aceitável. Poucos filmes conseguem representar com tamanha organicidade o aspecto sexual e explorador do capitalismo contemporâneo. A experiência do filme se assemelha à intromissão num baile de máscaras chique e tropical, onde, após uma noite de seduções e frases sussurradas ao ouvido, terminamos sem saber ao certo quem se ama, quem se odeia, e quem será morto no dia seguinte. Neste caso, a indefinição diz muito mais sobre as relações humanas do que as certezas.

Pacifiction (2022)
10
Nota 10/10

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