Palimpsesto (2024)

A ruína tem seu encanto

título original (ano)
Palimpsesto (2024)
país
Brasil
Linguagem
Documentário
duração
63 minutos
direção
André Di Franco, Felipe Canêdo
visto em
57º Festival de Brasília (2024)

Em 15 de junho de 2020, um incêndio tomou conta do Museu de História Natural e do Jardim Botânico da UFMG. Uma reserva técnica se perdeu por completo. Havia, ali, artefatos preciosos e raros, além de reminiscências humanos datando de cerca de mil anos. De certo modo, Palimpsesto começa pelo final, ou ainda, motivado pelo final. Desenvolve-se a partir dos detritos, ossos e elementos restantes na estrutura original. Organiza, então, um questionamento poético acerca da memória e da preservação.

A narrativa apresenta ao espectador reflexões fascinantes, propostas pelos arqueólogos encarregados de escavar e analisar o local. Eles se questionam: devemos encarar os restos enquanto meros indícios de algo que já existiu (um triste decalque do material primário), ou então como um elemento novo, transformado, dotado de beleza e função próprias? O fogo destruiu algo, ou criou algo? Ele serve para finalizar a existência das coisas ou, pelo contrário, para preservá-las (posto que os restos ainda constituem indícios de seus corpos e objetos de origem)? O fogo utilizado para aquecer os corpos e motivar rituais é o mesmo que devasta prédios e objetos?

O teor filosófico-existencial constitui o melhor aspecto do longa-metragem dirigido por André Di Franco e Felipe Canêdo. Os arqueólogos hesitam entre a tristeza diante de um senso de impotência (uma mulher lamenta a incapacidade de preservar, em míseros 40 anos, os ossos de nove mil anos atrás), e a beleza de se confrontarem a uma espécie de transformação acelerada da História, diante de seus olhos. “Eu sou arqueóloga, eu gosto de coisas”. Os itens encontrados em meio aos resíduos são distintos, mas também, de certo modo, idênticos àqueles existentes previamente. Existe algo fascinante para estes profissionais, ao menos ao nível intelectual, face à catástrofe presenciada. O espectador também admira a devastação patrimonial como quem desacelera o carro ao passar por um acidente na estrada. A bruta violência da natureza nos intriga.

Di Franco e Canêdo propõem um diálogo entre formas distintas de representação, tanto do cinema quanto dos artefatos — uma espécie de arqueologia da imagem.

Outro ponto de interesse da obra reside no desejo de expandir este caso específico para uma reflexão mais ampla acerca dos diversos incêndios que tomaram museus, cinematecas e outras instituições destinadas à memória nacional nos últimos anos. Podemos concluir que somos um povo sem memória, ou com desprezo pela nossa História? Que função possuem os arqueólogos e os cineastas diante destes episódios, em termos de preservação? As duas atividades podem ser consideradas complementares? Os diretores desenvolvem tais pensamentos de maneira sutil, evitando o didatismo e a denúncia frontal do descaso das autoridades. Aliás, o laudo do incêndio é retirado da narrativa, e ninguém será responsabilizado (pelo longa-metragem, ao menos) pelo ocorrido.

No entanto, algumas escolhas de linguagem se mostram menos interessantes. A proposta de performance com corpos estáticos nas ruínas, ou apertando o plástico-bolha que protegia algumas peças, resulta numa iniciativa tímida, abrupta e pouco desenvolvida. O evento final com a catarse coletiva, espécie de terapia de grupo para arqueólogos, cai na armadilha da saturação e da redundância: as falas em conjunto atingem um caráter ensurdecedor, mesmo assim, os criadores aumentam o volume e introduzem efeitos sonoros perturbadores por cima do caos. 

Os letreiros (“Segunda morte”, “Tempo espiralar”, “Camada de fuligem”, etc.) tampouco ajudam a organizar o pensamento, segmentar a narrativa em capítulos, ou ainda chamar atenção para algum aspecto específico das imagens e dos sons. Soam como uma poesia estéril a posteriori, elaborada em pós-produção, muito menos orgânica do que aquela obtida in loco, a partir dos materiais e reminiscências. “Hoje o fogo comeu uma parte do mundo”. Os poemas de uma personagem possuem uma força muito maior do que ornamentos vaidosos da finalização.

Palimpsesto também sofre com algumas inconsistências. Apesar da captação elegante das cenas iniciais (com a câmera fixa, observando a distância, manipulando a profundidade de campo e trabalhando impecavelmente a luz natural), adiante, a direção de fotografia aproxima-se de maneira desengonçada do personagem masculino principal. Agitando-se de maneira quase amadora, ela reenquadra rapidamente a imagem e busca o foco durante a cena, mesmo quando o homem está confortavelmente sentado, fazendo uma live para o Instagram. Existe certa indefinição conceitual entre a polidez e o senso de urgência, ou entre a vontade de impressionar pelo controle, ou pela abertura à falta de controle (a incorporação do imprevisto).

Ressalvas à parte, o saldo se prova bastante positivo — uma maneira de olhar para documentos enquanto possibilidade de construção artística, ao invés de mera apreensão da realidade. Talvez por isso a obra tenha sido definida como “ensaio” no Festival de Brasília, ao invés do tradicional “documentário”. Di Franco e Canêdo filmam a partir do incêndio, mas não filmam o incêndio. Criam com os restos, ao invés de sobre os restos. Neste sentido, propõem um diálogo entre formas distintas de representação, tanto do cinema quanto dos artefatos — uma espécie de arqueologia da imagem, se pudermos chamá-la assim.

O resultado se sobressai graças à capacidade de expor contradições, dúvidas, hesitações. Alguns personagens se revoltam em virtude dos acontecimento, a passo que outros, otimistas, propõem um “reapaixonamento” por aquilo que se encontra disperso no solo, em fragmentos mínimos. Afinal, tanto o cinema quanto a arqueologia chegam depois que os eventos passaram, cientes de que sua conservação diz respeito a uma realidade que, necessariamente, não existe mais. Não se banha duas vezes na mesma água do rio, assim como as imagens captadas pelos autores já não serão as mesmas encontradas hoje, em 2024, uma vez concluído o filme. Parte da beleza deste gesto consiste na tentativa utópica de capturar, preservar e congelar o tempo que passa.

Palimpsesto (2024)
6
Nota 6/10

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