As redes sociais nos acostumaram a produzir e consumir audiovisual de modo muito particular. Enquanto criadores e criaturas de nossas imagens, descobrimos facilmente as noções de engajamento e retenção, a obrigatoriedade do humor e o receio mortal do tédio — este perigoso inimigo que nos faz deslizar o dedo rumo ao vídeo seguinte. Por isso, é preciso que os primeiros segundos de cada imagem sejam engraçados, bombásticos, sensacionais, esquisitos. Caso contrário, não nos prende.
Para reter a atenção durante cinco minutos, outras estratégias entram em jogo: a supressão do tema (revelado somente no final do vídeo, para quem aceitar esperar intermináveis minutos), a contagem regressiva rumo ao top 1 “que vai surpreender você”, etc. O imperativo do entretenimento nos condiciona a fazer dancinhas, sorrir, contar piadas, e criar uma persona (justiceira, empolgada, o que seja) para veicular o tema com maior eficiência. A forma se torna conteúdo, enquanto a recompensa (cliques, curtidas, visualizações) oferece uma dopamina irresistível em tempos virtuais. Ter milhões de seguidores transmite a impressão de ser amado milhões de vezes. Quer algo melhor do que isso?
O filme deseja constatar problema, ao invés de discuti-los. Quer provocar indignação, despertar sentimentos fortes, mexer com o público apático, numa estratégia avessa a qualquer forma de ponderação crítica.
O que dizer então de um longa-metragem? Como sustentar 76 minutos da atenção deste espectador-de-celular, cuja atenção muda de foco a cada dez segundos? De que maneira discutir política na era do “Você não vai acreditar nisso!”, “Confira a verdade que não querem que você descubra!” e outros caça-cliques? Talvez o mais próximo que o cinema brasileiro político já tenha chegado desta tentativa de adequação se encontre em Paraíso, dirigido Ana Rieper. O projeto apela, da primeira à última cena, às mais epidérmicas, imediatas e chocantes emoções do espectador.
O resultado será delicioso ou insuportável, dependendo de seu grau de tolerância à estética da saturação dos sentidos. Afinal, o documentário procura denunciar todos os problemas do Brasil: a escravidão moderna, o racismo estrutural, o machismo, a violência doméstica, a segregação nas universidades, o patriarcado, a ascensão evangélica na política, o racismo obstétrico, os estupros, a cultura da exploração de empregadas domésticas, o extermínio de povos originários, a ganância dos agricultores, e muitos outros temas. Tudo isso de maneira ágil, leve, engraçada, picotada, ornada muita música e flashes curtos, reproduzindo o padrão das dancinhas e memes do TikTok. Para uma geração tão acostumada a flutuar entre temas variados num único clique na tela, esta oscilação seria moleza, correto?
É possível que Rieper e o montador Pedro Bronz (cujo trabalho é determinante neste ritmo teen-pop) tenham mirado num Ilha das Flores sob efeito de ácido, no sentido de os temas puxarem uns aos outros, de maneira humorística, apesar do fundo grave. Infelizmente, o resultado fica muito distante do curta-metragem clássico, por inúmeros motivos que convém listar aqui, na tentativa de estruturar o turbilhão de pensamentos suscitados por esta iniciativa. Antes de tudo, cabe destacar que as intenções são obviamente nobres: trata-se de um projeto conduzido por pessoas progressistas, que identificam questões sérias e importantes, merecedoras sem dúvida nenhuma de representação e questionamento no cinema.
O problema se encontra, portanto, na forma. Em primeiro lugar, Paraíso se atém à constatação do óbvio. São tantos temas acumulados, tantas denúncias soterrando umas às outras no discurso, que nada se aprofunda. A narrativa grita a todo instante: existe racismo! Há violência contra as mulheres! A escravidão não acabou! Abusam das empregadas domésticas! Estas percepções estão corretas, é claro. No entanto, nenhuma delas investiga de onde surge cada problema, como evoluiu, quais as possíveis alternativas ou modelos a adotar para confrontá-lo. O filme deseja reclamar, não discutir. Quer provocar indignação, despertar sentimentos fortes, mexer com o público apático, numa estratégia avessa a qualquer forma de ponderação crítica. Assemelha-se, assim, aos profetas de praças públicas, esgoelando-se a quem interessar possa a respeito da palavra de Deus, do apocalipse, ou de qualquer outro problema (alguém está escutando de fato?).
Em segundo lugar, reduz toda e qualquer discussão a uma caricatura — a superfície mais evidente de sua ilustração em imagens. Para representar “riqueza”, apresenta um desfile de moda de décadas atrás, com modelos brancas deslizando pela passarela. Para representar “pobreza”, volta-se a homens negros indistintos, presos por policiais nas ruas. A masculinidade remete a cenas de cabos de guerra, e a feminilidade, a aulas de ginástica. As falas em off provêm de empresários, deputados e das figuras mais alienadas e francamente grosseiras de suas classes sociais, somadas aos grupos minoritários percebidos como sofridos. Dá-lhe, portanto, imagens de empregadas domésticas abusadas nos quartinhos dos fundos, e mulheres agredidas pelos parceiros no elevador, em cenas perturbadoras, difíceis de assistir.
O filme parece acreditar que quanto mais forte for a imagem, maior será a conscientização. Esta falácia é desmentida por qualquer estudo sobre imagens produzido há mais de um século, desde a leitura de fotos da Primeira Guerra Mundial até as fotos de pulmões necrosados nos maços de cigarro, passando pelas pesquisas de Susan Sontag. Não nos tornamos pacifistas inveterados após a transmissão ao vivo de genocídios, nem abandonamos a nicotina após a campanha antitabagista do governo. Somente nos tornamos mais insensíveis, viramos o rosto para o lado, e nos felicitamos que aquele pulmão e aquela guerra não sejam nossos. Estão distantes: talvez sejam notícias falsas, inteligência artificial, algum meme. Não me diz respeito, então. Que alívio!
O esforço dos autores deste longa-metragem deve surtir tanto efeito prático (visto que o debate ponderado está fora do cardápio) quando a frase “Diga não à facção”, proposta pelo então ministro Sérgio Moro para inscrição na parede dos presídios. A mensagem é defensável, porém, a forma provoca risos ao ignorar a mínima complexidade do tema abordado. Isso porque, em terceiro lugar, o documentário evita dar voz e subjetividade às pessoas que pretende defender. Indivíduos negros são limitados a corpos negros, fragmentados e brilhando belamente ao sol na praia (déjà vu dos atores besuntados de óleo em Cidade de Deus); já a avó escravizada, a mulher agredida pelo marido e todas as outras são instrumentalizadas, em nome de suas causas. Resumem-se a isso: um número, uma citação, dentro do filme que acusa a mídia de resumir violências a números e citações.
Em quarto lugar, a montagem atinge ápices inesperados de cinismo em sua escolha de tornar as agressões e opressões divertidas, engraçadas, virais. Mulheres anônimas apanham violentamente dos parceiros ao som de “Cartas de Amor”. Menções de deputados e deputadas do PL à “família tradicional”, ou “família natural”, são articuladas como numa dancinha, um meme veloz e engraçado pronto para publicação no Saquinho de Lixo ou Newmemeseum. A tentativa de estupro também se associa à batida dançante e descontraída de um funk. Deste modo, a obra parece desdenhar da importância das questões, ou da necessidade de tomar certo distanciamento, investigar o que realmente acontece ali, e nos posicionar junto às vítimas. A empatia desaparece: este é o mesmo olhar que, diante de um acidente de carro na estrada, saca o celular para filmar corpos e destroços antes de pensar em prestar socorro.
Rieper e Bronz observam os agressores assim como observam as pessoas agredidas, à igual distância, com idêntico (e nulo) interesse. Querem mais é ver o circo pegar fogo, para lhes servirem de exemplo ao discurso de proteção às minorias. Para a lógica sensacionalista do projeto, quanto pior, melhor; quanto mais explícito, exagerado e revoltante for cada exemplo, mais impactante se tornará sua mensagem. Por este motivo, resulta conivente com as incontáveis falhas sociais que pretensamente denuncia. Nunca se compadece, nem mesmo observa com mínima humanidade e horizontalidade as personagens vitimizadas dos materiais de arquivo e dos registros policiais. Depois de serem agredidas em suas vidas, estas pessoas são violentadas uma vez mais pelo cinema que as objetifica (visto que a causa está acima de histórias particulares). Com este filme, a esquerda ganha seu próprio Brasil Urgente ou Cidade Alerta — o que não representa necessariamente um motivo de comemoração.