Peixe Abissal (2023)

O gozo do artista

título original (ano)
Peixe Abissal (2023)
país
Brasil
gênero
Biografia, Drama, Musical
duração
110 minutos
direção
Rafael Saar
elenco
Luís Capucho, Maurício Lima, Mery Ellen Alentejo, Pedro Paz, Teuda Bara
visto em
26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Quem dera todos os documentários sobre a vida de artistas tivessem a fluidez de Peixe Abissal. Em geral, dentro deste subgênero, os espectadores e críticos se deparam com obras elogiosas, em forma de homenagens. Após se constatar os grandes feitos — melhores álbuns, grandes composições —, parte-se para um retorno à infância, na tentativa de compreender quais condições permitiram o surgimento do talento (um viés determinista) ou para “humanizar” a figura conhecida apenas pelo aspecto público (viés fetichista).

Felizmente, o projeto foge a todos esses vícios e lugares-comuns. Em primeiro lugar, ele nunca parte do pressuposto que o cantor, compositor e escritor Luís Capucho seja um gênio das artes. O diretor Rafael Saar demonstra profundo interesse e curiosidade por este homem, a quem investiga junto ao público, conforme o filme avança. No entanto, jamais se rasga em elogios a ele. Isso rompe com a constatação de uma qualidade excepcional, vista enquanto fato, partindo em seguida para os tradicionais flashbacks comprobatórios.

Em segundo lugar, o projeto representa um homem para quem o trabalho criativo constitui apenas um dos aspectos de sua personalidade e vida. O protagonista é um músico gay; um indivíduo soropositivo; um sujeito de 60 anos de idade profundamente apegado à mãe; uma pessoa de libido afloradíssima, apaixonada pela pornografia; além de exímio crítico e cronista de si próprio. Estes aspectos jamais são apresentados separadamente, como uma lista de tópicos, mas na condição de fatores determinantes e indissociáveis.

Sobretudo, desaparece a noção de explicar o artista, introduzir sua existência às futuras gerações e deixar um traço de seus feitos na memória cultural e cinematográfica. É louvável se deparar com um projeto focado na preciosa subjetividade e na mente fértil de seu herói, ao invés de suas conquistas. Saar jamais se coloca abaixo do protagonista, de maneira humilde, abrindo câmera para que ele brilhe como bem entender. A direção mantém pleno controle de seu delírio autoral, no qual o cantor constitui uma das peças.

Seria mais justo falar em um filme com Luís Capucho do que um filme sobre Luís Capucho. O longa-metragem cresce conforme costura o documentário à ficção, à fantasia, à animação, ao musical, ao erotismo.

Logo, seria mais justo falar em um filme com Luís Capucho do que um filme sobre Luís Capucho. O longa-metragem cresce conforme costura, de maneira gradativa e vertiginosa, o documentário à ficção, à fantasia, à animação, ao musical, ao erotismo. Esta seria uma biografia imaginária, onde os fatos se misturam aos sonhos e desejos. Assim, o protagonista interpreta a si mesmo na juventude, em encenações que jamais soam apartadas esteticamente do real e do contemporâneo.

Por exemplo, Capucho revive a própria adolescência, espiando os rapazes nus no banho. Ele age como sua personalidade adulta, talvez arregalando um pouco mais os olhos para representar o espanto de quem encontra um pênis pela primeira vez. Nada na fotografia ou na montagem sugere que essa seria uma brincadeira, um faz de conta, pelo contrário: evocam-se os prazeres deste homem com um misto precioso de seriedade e leveza. É com impressionante descontração que o filme registra a nudez dos homens, a pegação nos cinemas pornográficos e o sexo oral explícito.

Isso decorre da escolha do cineasta de jamais enxergar esta vida por um viés espetacular ou chocante. O desejo pela pornografia, a intimidade com o marido, a descoberta do HIV e os efeitos do coma, que comprometeram sua capacidade motora, são admitidos como a mesma naturalidade de quem responde o nome, a idade e o local de nascimento. O ponto de vista da direção é munido de tanta empatia quanto desafetação e um senso de inconsequência. Ao contrário do estilo profundamente consequente das cinebiografias tradicionais (ele fez isso, para chegar nisso, em decorrência destas escolhas), paira um mosaico de sequências livres, que poderiam ser agenciadas em ordem distinta, sem prejuízo ao resultado. Somem julgamentos morais e relações de causa e consequência.

Saar aposta numa série de performances, entre a ficção pura e a autoficcionalização de Capucho. O artista se torna homem, personagem, persona, alegoria de si próprio. Os encontros com amigos e os diálogos aparentam em parte espontâneos, em parte controlados (o amigo na piscina). Em detrimento da revelação de uma verdade, diretor e protagonista unem-se na tarefa de imaginar as potencialidades de um Capucho fictício e cinematográfico, a partir do homem existente.

Isso implica na escolha de utilizar as canções de maneira frequente, porém em voz off, desconectadas do referencial imagético. Além disso, imagina-se uma personagem coadjuvante feminina (a dançarina do cinema Íris), espécie de contraponto aos desejos masculinos do herói; e cria-se uma mãe fictícia (Teuda Bara) com quem ele pode se relacionar, na ausência da verdadeira mãe, falecida. Em especial, o diretor introduz um número musical kitsch e queer de Ney Matogrosso — quando se sugere, inclusive, uma felação no cantor (vide a imagem em destaque acima). 

A presença de Matogrosso permite estabelecer uma associação entre ambos sem qualquer fala ou depoimento neste sentido — apenas pelo poder da montagem. Peixe Abissal está repleto de instantes mágicos, improváveis, provocadores. Nunca se sabe onde a narrativa chegará neste relato (qualidade típica da ficção), nem até qual ponto serão expostas as fragilidades física e emocional de Capucho. Quantos filmes com um boquete explícito podem se gabar de não soarem exploradores, voyeuristas nem sensacionalistas? 

Este elogio ao poder criativo do tesão resulta experimental sem ser desconexo, nem se colocar em posição hierarquicamente superior àquela do espectador. O filme é concebido para o público, ao invés de apesar dele (qualidade típica de muitas experimentações estéticas). Saar articula de maneira criativa e cúmplice as pulsões de vida e de morte. Ele aborda arte, envelhecimento, doença, desejo, amizade, filiação, como quem bate-papo com um conhecido no bar. Quando o potencial criativo do diretor se fricciona com aquele do artista retratado, atinge-se de fato um belo diálogo entre sensibilidades e linguagens.

Peixe Abissal (2023)
8
Nota 8/10

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