É evidente que este longa-metragem parte das melhores intenções. Ele deseja informar o espectador a respeito da imigração de haitianos no Brasil, ressaltando a tragédia ocorrida no país vizinho. Alerta a respeito da necessidade de acolhimento; denuncia o fascismo crescente em terras brasileiras; busca sensibilizar para a importância de abraçar novas culturas. Em última medida, propõe que as desavenças sejam superadas em nome de um olhar empático ao outro.
Aí começam, no entanto, os problemas de Porto Príncipe. O projeto realizado com imigrantes haitianos reais, sem experiência prévia em cinema, não é narrado pela perspectiva deles, mas de uma mulher branca e idosa, Bertha (Selma Egrei), que decide acolher Bastide (Diderot Senat) como faz-tudo em seu casarão na serra catarinense. O olhar permanece branco e dominante, solicitando mais tolerância, por favor, em relação a ele, ao diferente.
Os rapazes de língua crioula ou francesa são enxergados em terceira pessoa, na condição de objetos de estudo. Compartilham suas vivências apenas quando solicitado pelos senhores-patrões, que manifestam um interesse turístico nesta “visita inusitada” ao Sul conservador. A verdadeira protagonista parte a um centro de acolhimento, pergunta pela existência de algum negro disponível e, num corte simples da montagem, já levou um rapaz para casa.
O tratamento da “conciliação entre opostos” investe num sem-número de ferramentas para adocicar ou reduzir a complexidade do panorama étnico-racial no Brasil.
A facilidade desta “adoção” transmite um pensamento escravocrata, além de revelar o olhar depreciativo às ONGs e demais organizações governamentais que lidam com a chegada de estrangeiros. Então se entrega um homem de presente à primeira senhora de engenho que bate à porta, de madrugada? Todos iriam de bom grado, servis e silenciosos, porque “junto dos outros imigrantes, eu era apenas mais um”, conforme confessa Bastide? A banalidade desta transação, tanto pelos personagens quanto pelo filme, provoca espanto.
Os incômodos continuam. O roteiro coloca Bertha na posição de mulher proativa e generosa, ao abrigar o jovem desconhecido em sua casa. Apesar dos preconceitos enraizados (corrigidos posteriormente por um discurso dele), ela será devidamente desculpada pelos mal-entendidos, e tratada como a “primeira amiga” do imigrante no Brasil. “Isso sou eu. É o meu destino. Fujo de todo mundo que realmente gosta de mim”, ele confessará, envergonhado, depois de abandonar o posto. Nunca se discute pagamento ou condições de trabalho na casa-grande: o recém-chegado faz mais do que solicitado, lavando a louça por boa vontade e disposição em servir.
O cinema norte-americano já produziu, premiou, e depois questionou os méritos de obras como Um Sonho Possível (2009), Histórias Cruzadas (2011) e Green Book: O Guia (2018). Nestas tramas, figuras brancas bem-intencionadas superam o racismo graças ao amor. Apesar de preconceituosas inicialmente, aprendem a ser pessoas melhores, e ajudam os pobres negros que jamais poderiam se reerguer sozinhos. São os white saviors que realmente evoluem e recebem os louros do discurso. Os personagens negros funcionam como escada para este aprimoramento pessoal.
Porto Príncipe reproduz à letra este mecanismo. Bertha terminará por batizar um estabelecimento em homenagem aos imigrantes — está vendo como ela é uma pessoa gentil? Até Conduzindo Miss Daisy (1989), outra pérola da boa-consciência colonizadora, ganha uma referência-homenagem na trama. O jovem negro tem suas conquistas ocultadas pelas elipses da montagem (subitamente, consegue emprego remunerado, além de trabalho voluntário e namorada), pois o drama perde o interesse nele quando deixa de executar a função de transformador de brancos. Bastide é objetificado e instrumentalizado pelo filme.
Resta ao Haiti a imagem catastrófica de ruínas, fogo, pessoas correndo. O material de arquivo é repetido, na intenção de alertar que, de fato, os cidadãos atravessaram um calvário. Ora, o país caribenho se resume ao caos: as causas de tal destruição são ignoradas. Seus habitantes não possuem subjetividade, não lutam, não carregam cultura, nem sonhos. Convertem-se em vítimas desesperadas, caladas e prestativas. Não havia nada positivo, segundo o longa-metragem, neste país de chamas e pesadelos.
Esteticamente, o tratamento da “conciliação entre opostos” investe num sem-número de ferramentas para adocicar ou reduzir a complexidade do panorama étnico-racial no Brasil. Uma trilha sonora ao piano, de melodias e carícias, irrompe a cada nova frase de efeito da matriarca generosa (“Foi a tua coragem que me deu coragem de recomeçar a vida”). As coincidências se multiplicam: a rádio fala obviamente de haitianos no único instante em que é ligada, assim como a televisão apresenta reportagem sobre os imigrantes para informar Bertha e o espectador.
A filha da protagonista surge no posto de gasolina quando Bastide precisa encontrá-la, e assim que visita um albergue repleto de estrangeiros, o trabalhador encontra imediatamente o antigo “amigo” de chegada ao Brasil. As facilidades e conveniências aproximam o drama de uma fábula exemplar, privilegiando o realismo fantástico onde o racismo é constatado e lamentado, apenas para ser desfeito face ao poder do afeto. Detalhe: é o haitiano arrependido quem precisa partir em busca da grande amiga racista, para fazerem as pazes. Nem esta dignidade é reservada ao pobre herói, coadjuvante da história supostamente dedicada a ele.
Restam os enquadramentos estáticos demais, sem dinâmica de cena; diversos problemas de eixo e montagem; além da composição caricatural de personagens — o que dizer do filho-vilão-de-novela encarnado por Leonardo Franco? O ataque racista no estacionamento, a embriaguez de Bastide e a cena pós-créditos escancaram tamanha falta de nuance com a linguagem que terminam por prestar um desserviço à causa. O espectador racista não precisa se incomodar, afinal, está longe de se equiparar aos sujeitos cartunescos na tela. Critica-se uma ideia do racismo, ao invés do racismo estrutural vigente.
“Amigo a gente não escolhe. Amigo a gente encontra”. No final, Porto Príncipe narra uma história de amizade reparadora. Coloca a solidão de Bertha em paralelo ao racismo e à tragédia familiar de Bastide, enquanto dores equivalentes. Por mais que o rapaz emita um discurso a respeito da impossibilidade de equiparar a imigração alemã à chegada de refugiados haitianos, o filme se alinha ao bom-mocismo da senhora idosa, acreditando que o trauma de ambos possa ser consertado pela presença de um companheiro com quem conversar. Juntos, damos as mãos, fazemos as pazes e construímos um país melhor.