Uma família surge do meio das pedras. A cena inicial faz com que pais e filhos apareçam por detrás dos rochedos de Ponta Negra, em Paraty, como se constituíssem parte integrante da natureza. Durante toda a narrativa, o cineasta Vinícius Girnys enxerga esta família pela ligação íntima com a vila de pescadores onde a eletricidade ainda não chegou. Ele registra as noites à luz de vela, o pega-pega noturno das crianças com lanternas, as roupas lavadas no rio. Marido e esposa estão acostumados a uma rotina crônica, entre manhãs de pesca, afazeres domésticos e cuidados com as crianças.
O posicionamento ético e cinematográfico do diretor se faz claro em poucos minutos. O longa-metragem evita julgamentos morais em relação aos personagens: o pequeno Samuel, seus irmãos e pais não são vítimas de uma vida precarizada, tampouco se tornam pessoas mais felizes pelo distanciamento dos vícios da modernidade. Adiante, quando a luz elétrica chega ao local, a rápida conversão à TV e aos telefones celulares tampouco se reveste de um discurso a respeito da corrupção de valores tradicionais.
O projeto observa a rápida transformação de maneira clínica, porém sem tese prévia. Não pretende transmitir nenhuma mensagem específica ao espectador através desta crônica de costumes. Em outras palavras, evita o cautionary tale, e também o aspecto expositivo e didático que incomoda em tantos documentários movidos por “temas importantes” (como se fosse possível estabelecer tal hierarquia). O autor tem muito a mostrar e pouco a explicar — ainda bem. Deixa que o espectador perceba, sutilmente, a degradação do casamento, a chegada do turismo, o crescimento das crianças. Girnys está disposto a captar aquilo que venha acontecer à sua frente, ao invés de modificar o real para entrar numa concepção prévia.
Existe evidente pensamento cinematográfico por trás de cada plano — não no sentido de encontrar a composição “mais bonita possível”, mas aquela capaz de valorizar a melancolia reinante nos personagens.
Aqui, a abertura ao acaso dispensa o possível aspecto de aleatoriedade. A direção de fotografia, assinada por quatro pessoas (Pedro Cortese, Chico Bahia, Olívia Pedroso e Vinícius Girnys), efetua um trabalho cuidadoso de composição, sobretudo em planos fixos. Utiliza o contraluz e favorece a expressividade da natureza sem nunca enveredar ao aspecto turístico — os personagens praticam o turismo, mas o filme, não. Talvez alguns planos destoem do conjunto, caso dos movimentos bruscos sobre o barco, e do enquadramento se redefinindo após longos segundos de conversa da mãe com uma amiga.
De resto, a equipe sabe muito bem se posicionar, tanto na observação dos personagens à distância, carregando palmitos e madeiras para a construção da casa, quanto nos instantes em que se faz incrivelmente próxima, na subida íngreme com uma geladeira nas costas, ou acompanhando a bola de um jogo de futebol, chute a chute. Existe evidente pensamento cinematográfico por trás de cada plano — não no sentido de encontrar a composição “mais bonita possível”, mas aquela capaz de valorizar a melancolia reinante nos personagens.
O desenho de som também merece atenção. Os criadores optam por um som “sujo”, no sentido de incorporar a multiplicidade de ruídos ao redor. A escolha favorece a inserção dos familiares no espaço, sublinhando a dinâmica da comunidade. Em contrapartida, permite que os barulhos se sobreponham até demais às falas, comprometendo a compreensão das conversas (algo que vale para as pequenas falas corriqueiras, mas também para diálogos importantes). Na sala de cinema, as legendas em inglês se tornaram fundamentais, ironicamente, para assimilar as trocas entre os protagonistas.
Narrativamente, Samuel e a Luz também levanta alguns pontos de interrogação quando a mãe assume o papel principal, deixando o filho em segundo plano, ou quando o comportamento presumivelmente abusivo pelo marido surge de maneira discreta até demais. Seria responsabilidade do filme explicitar os fatos para defender esta mulher, ou, pelo contrário, se afastar de modo a preservar o instante de crise do casal? A exposição dos pormenores trairia a confiança dos personagens na equipe de cinema? Girnys prefere o pudor. Não ignora acontecimentos, porém evita transformá-los em motor narrativo.
Ao final, resta um projeto sóbrio, elegante, capaz de transmitir reflexões ao invés de mensagens, e fugindo às armadilhas desgastadas do documentário pedagógico. Somem os letreiros, a voz em off, as cartelas com dados e anos. Acredita-se na capacidade do espectador em deduzir e compreender ações apenas pelas imagens e pelos sons, sem a necessidade de mastigar significados. A filmagem do prefeito local entregando presentes às crianças pode ser questionada, em contrapartida, o projeto evita associar de maneira direta as mudanças no vilarejo (para melhor ou não, cabe ao espectador julgar) aos atuais governantes.
Pelos festivais onde passou, a obra foi claramente descrita enquanto documentário, o que talvez corresponda à sua aparência imediata. No entanto, iniciativas como esta nos permitem refletir acerca dos diferentes graus de ficcionalização permitidos pela linguagem documental. Diversas cenas soam controladas, induzidas ou repetidas para as necessidades de uma decupagem bastante precisa. As falas do marido, em especial, carregam certa aparência de roteirização. Nada disso é positivo ou negativo em si, porém ressalta a impureza benéfica e essencial em qualquer linguagem do cinema. A porosidade de estilos e registros potencializa a criatividade narrativa.
O interesse da obra se faz ainda maior em contraste com as fricções da realidade. Samuel e a Luz foi exibido no Cinema da Praça, em Paraty, com os familiares presentes — marido e esposa, lado a lado —, além do prefeito, que frequentou ambas as sessões do filme. O político discursou, mostrou-se amigo dos personagens, vangloriou-se da modernização em Ponta Negra, declarou possuir carinho especial por esta parte da cidade. Abraçou e beijou Samuel no palco, para evidente desconforto da criança. O uso eleitoreiro do “nosso festival”, nas palavras do representante, prolonga os desconfortos da contemporaneidade e o uso amargo das imagens para além da tela do cinema.