“O corpo feminino nasceu coletivo. Nisso, percebo a minha subjetividade”. O documentário das diretoras Graciela Guarani e Alice Gouveia investe, desde os primeiros segundos, em reflexões acerca da organização social e dos papéis de gênero em comunidades indígenas. Enquanto isso, o espectador assiste apenas à longa imagem de uma fogueira — que retornará adiante. “O coletivo é utilitário”, sustentam as vozes em off, várias vezes. A tendência à repetição se reproduz na narrativa.
O projeto possui uma estrutura interna muito particular. Para denunciar o avanço de igrejas evangélicas em territórios reservados aos povos originários, lança ideias impactantes, porém simples e reincidentes. A afirmação de que “para o indígena, a terra é tudo” ressurge duas vezes, com variações mínimas. Chegando ao final, os entrevistados (em voz off) resgatam as ideias do terço inicial. Voluntariamente ou não, a montagem constrói uma narrativa em círculos, quase um mantra.
Sekhdese (ou “sabedoria”, na língua Fulni-ô) depende da fala de terceiros para representar eventos que as cineastas não estão dispostas a filmar. Fala-se da aproximação de pastores, discute-se a “sedução” dos indígenas com cestas básicas e outros produtos. Ninguém duvida que estes fenômenos ocorram de fato, em larga escala, porém teria sido importante acompanhar, no dia a dia, tamanha pressão da civilização branca pela assimilação cultural dos povos originários.
Precisamos interromper a crença falaciosa de que temas importantes dispensam cuidados estéticos — como se, quanto maior fosse a nobreza temática, menor a necessidade de pensar a linguagem.
Num vídeo divulgados pelas redes sociais, dois pastores (com seus rostos desfocados) comemoram a conversão de indígenas ao monoteísmo cristão. Mas essa seria a melhor maneira de apontar culpados? Escolhendo somente poucos segundos de um vídeo representando pastores anônimos? Adiante, a ex-ministra Damares Alves prega a dominação evangélica na política e em todo o Brasil. O caso se aplica aos indígenas, ainda que não os vise especificamente. De resto, precisamos confiar nas denúncias verbais, posto que a obra não nos fornece dados, provas, documentos, ou demais indícios da situação alegada.
Para além das questões narrativas, o projeto desperta atenção devido às deficiências estéticas e de linguagem. A captação ocorre em textura digital de baixa qualidade, caso em que os pixels dançam na tela e dificultam tanto a percepção dos rostos (em close-ups fechadíssimos) quanto dos espaços. As cores são saturadas em excesso, e a fotografia sofre com graves desníveis de luz. Muitas vezes, os entrevistados estão mergulhados na escuridão, antes de, num corte da montagem, reaparecerem superexpostos pela luz do sol num ângulo distinto. A mixagem interrompe ruídos abruptamente, e o barulho do vento se sobrepõe às vozes na captação sonora. A produção não parece bem pensada em termos de composição de imagem ou nas maneiras de lidar com imprevistos.
Por isso, soam modestas as investidas numa forma de poesia que nem a fotografia, nem a montagem conseguem potencializar. Os flashes de notícias de jornais, pontuados pelo som de tiros, seriam mais apropriados a um noticiário sensacionalista; a sequência de música grandiloquente com o brilho do sol nas árvores e nas folhas remete a uma beleza kitsch, genérica. As criadoras passam anos em comunidades distintas de Pernambuco, algo sinalizado pelos letreiros, porém as imagens soam idênticas de um lugar para o outro, de um ano ao tempo seguinte. As particularidades de cada povo estão ausentes, assim como a evolução de seus problemas e estratégias de luta.
Na segunda metade da trama, as diretoras se colocam em cena, caso em que Sekhdese ameaça enveredar pela vertente metalinguística. Talvez investigasse então a relação das autoras com seus personagens, ou revelasse as circunstâncias de filmagem. Ora, a estratégia se interrompe a seguir. Uma sequência articula quatro ou cinco planos aéreos com drones, antes de a viagem pelos ares ser abortada, sem surtir nenhuma consequência no restante da narrativa. Então, novos pedaços de madeira queimam, como na abertura.
Ninguém questiona a validade do tema e a importância de discutir os perigos que afetam os povos originários atualmente. É fundamental escutar as mulheres destas comunidades, entender sua relação plural com a religiosidade, e com a cultura branca que insiste em tomar suas terras e eliminar seus costumes. Ainda se valoriza o fato de Graciela Guarani ser uma cineasta que denuncia tais mazelas com evidente conhecimento de causa e lugar de fala. Conceitualmente, a iniciativa se sustenta muito bem.
Em contrapartida, não é mais possível equivaler um cinema indígena a uma produção apressada, com tantos problemas de luz, som e montagem. O cinema brasileiro tem construído pérolas, dentro de comunidades afastadas e enfrentando inúmeras dificuldades de produção. Este é o caso de Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, A Flor do Buriti, Ex-Pajé, A Última Floresta, Mãri Hi — A Árvore do Sonho e Thuë Pihi Kuuwi: Uma Mulher Pensando, para citar apenas alguns.
O discurso de urgência e relevância política não pode se restringir às denúncias explícitas somadas a imagens “de suporte”, cujo valor se encontraria no simples fato de ampliarem as falas destas pessoas a um público maior. Com suas carências e repetições, Sekhdese desperta a impressão de não possuir material suficiente para um longa-metragem, caso em que alguns trechos são inseridos para atingir a duração mínima deste formato.
Precisamos interromper a crença falaciosa de que temas importantes dispensam cuidados estéticos — como se, quanto maior fosse a nobreza temática, menor a necessidade de pensar a linguagem. O cinema possui tanta responsabilidade com os povos retratados quanto com as imagens e sons destinados a representá-los.