Entre os anos de 2002 e 2016, o diretor Leonardo Lacca filmou seu avô. Figura conhecida pelo bairro, o ex-policial era conhecido pelo flerte com as mulheres (“mas com respeito”, ele frisa), pelos empréstimos que costumava fazer no banco, por dirigir mal, por sair das festas cedo. As lembranças do cineasta são de ordem afetiva, mais do que idealizada. Ao invés de sugerir que foi um grande homem, de índole e moral impecáveis, o autor declara que o amou.
Neste sentido, o projeto rompe com tantas cine-homenagens destinadas a provar o valor dos biografados e inscrever nas gerações futuras o discurso de pessoas valiosíssimas. Some a noção do cinema enquanto mérito: em oposição à ideia de que Severino Cavalcanti “merecia” um filme em função de suas contribuições, o protagonista se torna centro de um projeto audiovisual graças exclusivamente ao carinho do neto e à vontade de fazê-lo.
Estamos, portanto, mais próximos de um sujeito comum, semelhante a tantos avós e familiares nossos. A identificação com o espectador opera de maneira eficaz face ao sujeito um tanto ranzinza, com seus segredos, apesar de íntegro em convicções políticas (posicionava-se à esquerda, e insistiu em votar na “Princesa Dilma”), e atencioso com os familiares. As contradições inerentes a qualquer pessoa são bem retratadas neste perfil assumidamente parcial e enviesado — e como não sê-lo?
Surpreende a tendência a verbalizar os pontos de partida, metodologias e objetivos. Estes narradores generosos incorporam parte do debate e do making of em seus próprios filmes.
A respeito de proximidades, a câmera se posiciona perto até demais do senhor idoso. Registra os banhos, o corpo adormecido sobre a cama, a mão enfiada por dentro do calção. Lacca insiste que o avô não se importava em ser filmado, e demonstra, através desta abordagem, a vontade de superar vaidades e também revelar certa onipotência (ou onipresença) do cineasta em relação ao protagonista. Não por acaso, Severino inicia o filme literalmente dentro de um grande turbilhão de pontos coloridos, produzidos em efeito digital, transformando o homem no núcleo deste átomo audiovisual.
Percebe-se que o longa-metragem seria menos sobre Cavalcanti do que a relação entre avô e neto. Em outras palavras, o cineasta também se converte em personagem, filmando-se à mesa durante uma refeição, ajudando-o se arrumar no consultório médico. Sobretudo, assume a função de narrador em off, para explicar os objetivos do projeto, o tempo em que trabalhou estas imagens, os sentimentos pelo parente falecido.
É engraçado como o procedimento tem se tornado familiar, em vários sentidos do termo. Kleber Mendonça Filho (produtor desta obra), em Retratos Fantasmas, também recorria à narração da infância através de memórias e afetos em voz off. Karim Aïnouz, em Marinheiro das Montanhas, investigava suas raízes argelinas, também lançando perguntas retóricas acerca da impossibilidade de reconstruir o passado come exatidão.
Aqui, os questionamentos retóricos se mantêm: “Quando parar de filmar você?”, questiona a voz do cineasta. A certa altura, o pressuposto da carta endereçada ao avô morto permite brechas de lógica, quando a narração informa ao espectador dados que Severino claramente já conhecia (“Minha mãe foi a sua primeira filha”), ou se comunica diretamente com o espectador (“Essa senhora da esquerda é Vani”).
Embora as biografias familiares em primeira pessoa sejam comuns no cinema brasileiro autoral há muito tempo, surpreende em especial a tendência a verbalizar, de maneira cada vez mais clara, os pontos de partida, metodologias e objetivos da empreitada. Estes narradores generosos, mas também explicativos, incorporam parte do debate e do making of em seus próprios filmes. Antecipam-se às perguntas que devem receber e, estranhamente, transmitem a sensação de que devem explicações ao espectador, como se precisassem prestar contas, tal qual o pesquisador diante de sua banca avaliadora. “Aqui, seu microfone falhou”, declara Lacca, antecipando-se, e, de certa maneira, se desculpando.
Para além disso, o recurso transparece a descrença nas próprias imagens e sons, como se não dessem conta de revelar, sozinhos, os objetivos, métodos e hipóteses do cineasta-pesquisador. Por que declarar que Cavalcanti foi filmado entre 2002 e 2016, se existem inúmeras festas de aniversário no filme, com as datas registradas na vela do bolo? Por que verbalizar o falecimento do avô, se os primeiros encontros sem sua presença, com a filha chorando, transmitem esta informação? Por que revelar que o avô tentava fugir do prédio, se o vemos efetuando esta mesma ação?
Em paralelo, Seu Cavalcanti revela de maneira cada vez mais pronunciada os mecanismos de ficcionalização. As falas são ditadas pelo neto ao avô, que repete meia dúzia de vezes cada frase ao microfone. A animação inicial (e sua versão posterior, com um mar de uísque) incorpora o making of do senhor parado diante de uma tela verde — novamente, paira a estranha sensação de que precisa explicar ao espectador exatamente como as imagens foram obtidas, em quais circunstâncias.
Adiante, decide filmar conversas e encontros em plano e contraplano. O procedimento se mostra raríssimo para uma obra de aparência documental. Presenciamos a ligação telefônica entre Cavalcanti e a filha, com a câmera presente simultaneamente nos dois espaços separados. Quando ela chega em casa à noite, dois planos distintos são consagrados à entrada da mulher. O autor expõe progressivamente seu controle e intervenção, despertando o sentimento de que todas as captações podem ter sido, em certa medida, ensaiadas, sugeridas ou condicionadas.
As encenações atingem seu ápice no episódio relacionado à namorada evangélica do avô. Maeve Jinkings interpreta esse papel, aproveitando os presentes do homem idoso, e fazendo carinho enquanto se sentam sobre o sofá. É provável que a atriz apenas esteja reproduzindo acontecimentos reais na vida do personagem, para os quais não havia registros em imagens. Entretanto, as circunstâncias permanecem nebulosas — neste aspecto, ironicamente, Lacca não sente a necessidade de contextualizar. A personagem pode ter sido mera invenção do autor para representar a paixão do avô pelas mulheres.
Ressalvas à parte, o filme proporcionou uma das sessões mais calorosas e divertidas da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O público gargalhava com frequência, e o personagem se tornou o tópico preferido de conversas pelos corredores após a sessão. Logo, o cineasta foi capaz de transmitir um pouco de seu afeto ao público, que conheceu o parente ao longo de míseros 71 minutos.
Não é uma tarefa pequena, especialmente em se tratando de um projeto propenso aos temas graves. Afinal, Seu Cavalcanti retrata a morte do avô, além de sua progressiva degradação mental. Há muita sensibilidade para representar a perda de memória e a confusão do protagonista, sem espetacularizar sua condição. Como o próprio homem idoso insiste em afirmar, os exames de coração, pulmão e outros órgãos estavam excelentes. Lacca se encontra tão próximo de seu objeto de estudo que enxerga os detalhes invisíveis aos demais. O herói é posicionado sob o microscópico de um cientista dedicado.