Seus Ossos e Seus Olhos (2019)

O corpo não encaixa

título original (ano)
Seus Ossos e Seus Olhos (2019)
País
Brasil
gênero
Drama
duração
119 minutos
direção
Caetano Gotardo
elenco
Caetano Gotardo, Malu Galli, Vinícius Meloni, Carlos Escher, Carlota Joaquina, Larissa Siqueira, Marina Tranjan, Wandré Gouveia, Daniel Turini, Irene Dias Rayck
visto em
Cinemas

É curiosa a maneira como, nos filmes de Caetano Gotardo, o desajuste social se somatiza nos corpos. Personagens em crise existencial, em falta de afeto, em busca desesperada por algum tipo de vínculo, procuram literalmente encaixar seus corpos uns nos outros, mas não conseguem. Num filme anterior do cineasta, descobria-se a possibilidade de juntar o olho do protagonista ao ombro da pessoa amada. Considerando apenas a cavidade óssea onde se encontra o globo ocular, o encaixe soava plausível. 

Em Seus Ossos e Seus Olhos, há inúmeras demonstrações de desconforto. João (interpretado pelo cineasta) se senta no sofá, aparentemente confortável, da amiga Irene (Malu Galli). No entanto, a coluna fica inquieta, as pernas não se ajeitam, o pescoço teima em encontrar uma boa posição. O jovem desliza pelo móvel, termina no chão. Contorce-se de um lado para o outro. Estica as pernas, dobra as pernas, pega uma almofada, larga a almofada. Não adianta. 

Algumas cenas mais tarde, tanto o encontro com um homem desconhecido do metrô quanto a conversa com o namorado na cama resultam em embates semelhantes: os corpos brigam tanto quanto se desejam, numa combinação inesperada de combate e desejo sexual. Em outro sofá, os rapazes trocam de lugar, sobem em cima do outro, invertem a posição. Não há contemplação nem possibilidade de descanso. Durante os poucos instantes sozinho, João improvisa uma coreografia agressiva na sala de casa, ou retorce os braços e gira pelo ar durante a caminhada na rua. Mesmo o título da obra se volta a essa corporeidade explícita e imediata. Priorizam-se organismos a sentimentos.

Ironicamente, este cinema da inquietude se encontra com uma narrativa de inércias. Nenhum personagem possui conflitos propriamente ditos. Não há objetivos inalcançáveis, oposição de vontades, jornadas a percorrer. O longa-metragem é recheado de conversas a dois, quando amigos evocam seus amores passados, ou narram episódios curiosos vividos poucas horas atrás. Nestes instantes, os amigos se calam e escutam, pacificamente. Há um público disponível e generoso para cada relato íntimo. Face a tempos de correria e instabilidade, a ficção concebe uma curiosa sociedade da empatia.

O autor se interessa menos pela beleza do real do que pela possibilidade de representá-lo de maneira lúdica, próxima do realismo fantástico.

Este fator serve a atenuar a impressão sempre dúbia diante do cinema autobiográfico. Diretores (especialmente jovens) que oferecem a si mesmos o papel de protagonistas, retratando relações amorosas calorosas e frequentes, e podendo falar de suas angústias com amplo respeito, costumam despertar a aparência de narcisismo, de uma arte incapaz de olhar para o mundo ao redor. O fato de João ser um cineasta que viaja o mundo com seus filmes, exatamente como Caetano Gotardo, não ajuda a dissociar o espectador do componente referencial.

No entanto, a horizontalidade entre personagens promove um equilíbrio de pontos de vista. Quando se encontra com a melhor amiga Irene, com o namorado Álvaro (Vinicius Meloni) ou com o amante Matias (Carlos Escher), o protagonista se limita a escutar as narrativas alheias. Nos ensaios do namorado ator, coloca-se no fundo do quadro, na função de espectador atento. Nem tudo gira em torno deste cineasta, cujo filme-dentro-do-filme permanece em segundo plano. Apenas quanto se encontra sozinho, o herói improvisa monólogos ao telefone, embora ninguém escute do outro lado da linha. O jovem se presta à performance, enquanto revela uma personalidade solitária e plácida — mesmo que, na conclusão, o acusem de ser secretamente violento.

A respeito desta expressividade, o drama empresta sua mise en scène às mais diversas artes e formas de expressão. Há elementos de dança contemporânea, junto a mecanismos próprios da performance. Os colegas citam poemas de memória, com naturalidade, enquanto se expressam em frases tipicamente literárias (“Isso aqui já é memória, eu pensei”, “Umas gotas paradas na pele, e outras, escorrendo”). Adotam uma postura e uma entonação digna dos palcos. Escutam música, escrevem em seus cadernos. Todos respiram arte, sem qualquer tipo de fronteira delimitando modalidades culturais.

A abordagem se torna orgânica graças ao abandono imediato do realismo. Desde a cena inicial, um close-up do cineasta-protagonista, em expressão exagerada de raiva (“Isso é o que eu não consigo. Queria ser mais violento”, reclama consigo mesmo), sugere que estes corpos agem, falam e se expressam longe de uma vivência naturalista. Declamam, ao invés de falar; dançam, ao invés de andar; coreografam uns sobre os outros, ao invés de chegarem ao ato sexual de fato (pudicamente cortado pela montagem, que salta ao pós-coito — os corpos não se encaixam nem na concretização do sexo). 

Deste modo, manifesta-se a paixão pelo controle e pelo dispositivo. O mundo se adequa às necessidades da câmera, ao invés de a imagem se adequar ao mundo. As falas soam cuidadosamente escritas e entoadas, em enquadramentos fixos e bem pensados. Aproximando-se da rigidez de um texto teatral clássico, ou da moldura de uma pintura clássica, transparece a impressão de um universo pintado, escrito, criado por Gotardo. O autor se interessa menos pela beleza do real do que pela possibilidade de representá-lo de maneira lúdica, próxima do realismo fantástico. Os sons altíssimos dos ruídos, as ruas vazias para a correria de João e a ausência de conflitos ao redor atestam um curioso cinema-baú, fechado, cuidado e protegido da sociedade ao redor tal qual uma relíquia preciosa.

Tais aspectos podem levar à impressão incômoda de um cinema burguês, na vertente dos white people problems. João se indaga se deu dinheiro suficiente ao pedinte na rua; se deveria mesmo ter comprado as fraldas a uma pessoa em situação de rua. Ninguém tem prazos a cumprir, obrigações de trabalho, problemas com familiares, dívidas, pendências em casa e fora dela. Vive-se em apartamentos confortáveis, passeia-se por museus quando se quer, passa-se a tarde no ócio das casas amplas. Qualquer senso de urgência desaparece: os personagens aparentam viver somente para seus amores e desamores, suas crises e superações. Estão descolados de instituições e núcleos sociais precisos. 

No entanto, um raciocínio contrário consistiria em dizer que nenhum criador seria obrigado a atribuir um sentido explicitamente político às suas obras. A escolha por revelar apenas pessoas de classe média-alta, em autorreflexões narcísicas, seria uma escolha política em si própria. Muitas vanguardas cinematográficas começaram sem um posicionamento social explícito — vide os filmes iniciais, igualmente burgueses, da Nouvelle Vague francesa. Gotardo decide se concentrar numa esquerda artista, progressista e poligâmica, destituída das neuroses e carências (estruturais, financeiras, institucionais) que costumam lhe ser atribuídas. 

Paira uma sensação de liberdade associada à linearidade, ao ar blasé. Nenhuma catarse transforma a vida destes personagens cujo ápice da rotina diária consiste em perceber na rua, por acaso e durante poucos segundos, uma antiga paixão. Há certo medo em machucar, em ser agressivo, em ser imprudente ou irresponsável. João revela a Matias, com embaraço, que se encontra num relacionamento aberto, algo que deveria ter contado antes do ato sexual entre ambos. O outro perdoa, embora se ressinta de não ter sido avisado antes. Preocupa-se com as sensibilidades alheias, com a percepção dos demais, com a má interpretação de nossas palavras. Tal doçura e delicadeza pode ser confundida, por alguns, com falta de potência.

No final, Seus Ossos e Seus Olhos pratica uma linguagem idiossincrática, e orgulhosa disso. Existe certo reconforto em encontrar um autor muito ciente da forma de arte que lhe interessa, em pleno domínio desta encenação teatral-musical-coreográfica-cinematográfica. A reencenação das sequências iniciais em novos cenários, adotando leves variações de texto e personagens, reforça o teor metalinguístico de um longa-metragem tão interessado no ato de fazer cinema quanto nos personagens que ocupam a narrativa. Gotardo se mostra coerente em sua linha autoral, explorando em profundidade os limites desta proposta estética. Espera-se que os corpos continuem a se chocar, agressiva ou amorosamente, em busca de um encaixe impossível.

Seus Ossos e Seus Olhos (2019)
6
Nota 6/10

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