“Você se identifica como humana?”. “Não”. A protagonista, Una (Gina Rønning), apresenta-se inicialmente ao espectador durante uma entrevista. Ela explica que se considera uma criatura híbrida entre o ser humano e as sereias, enxergando neste universo mágico uma possibilidade de ser o que bem entender. Por isso, o que começa como uma metáfora identitária se torna um atributo cada vez mais literal: a psicóloga começa a usar rabo de peixe, passar mais tempo na água e, em especial, encontrar outras mulheres, homens e pessoas não-binárias que se identificam como sereias.
Sirens Call possui uma estrutura curiosa, avessa à narrativa clássica. Alguns letreiros se apresentam na tela (“A seca”, “A amiga”, “O grupo”, “A biografia”), ainda que não organizem necessariamente a trama, nem provoquem uma linearidade, tampouco a sensação de causa e consequência. Durante cerca de 40 minutos, o espectador mergulha numa ficção etérea, de vertente experimental, onde uma atriz aparenta interpretar a figura sobre-humana citada acima. Ela possui os olhos vidrados e a fala doce, como se habitasse um sonho vítreo, flutuante, suspenso, em câmera lenta.
Entretanto, passado o terço inicial, chegam outros personagens, oferecendo algo próximo do depoimento habitual dos documentários. Confessam ser sereias e sereios, oferecendo ao espectador motivos claros pelos quais a figura mitológica canaliza suas ânsias sociais e de identidade. “Este mundo é o meu pesadelo, não é o seu?”. “Eu sinto que o meu gênero não é o gênero que os humanos têm”. Assim, dirigem-se à figura sedutora e sexualizada, ainda que desprovida de genitálias humanas. Uma criatura de curiosidade e perigo, de atração e repulsa.
O longa-metragem explicita uma simbologia: a sereia se encaixa no imaginário LGBTQIA+ e PCD, enquanto ser diferente, não-pertencente em termos de corpo, identidade e sexualidade.
Una integra o painel de entrevistados. Neste momento, sua fala se torna menos lânguida, menos encenada. Sai da personagem-de-si-mesma para explicar como a persona aquática tomou conta de sua existência. Reivindica o direito de ser tratada enquanto criatura, posto que esta identificação lhe faz bem. O longa-metragem explicita aquilo que recebia, até então, um tratamento simbólico: a sereia se encaixa no imaginário LGBTQIA+ e PCD, enquanto ser diferente, não-pertencente em termos de corpo, identidade e sexualidade.
Para as diretoras Miri Ian Gossing e Lina Sieckmann, o recurso à fantasia permite, em primeiro lugar, oferecer ao espectador um olhar de estranhamento ao mundo tido como natural. As falas sussurradas de Una, as cores pastéis, as luzes leitosas transformam os passantes de um evento noturno em figuras estranhas de um mundo distante. De repente, são eles os diferentes, aqueles que não parecem orgânicos. A obra propõe ao público a oportunidade de enxergar as regras sociais pelo olhar das sereias, naturalizando a fala das protagonistas, e criando certo misticismo em relação à comunidade cis-heteronormativa.
Em segundo lugar, o limite tênue entre a crença e a fabulação (estas pessoas acreditam realmente ser sereias?) leva a direção a materializar algumas de suas fantasias. Os personagens são filmados com maquiagem plena, rabos de peixe brilhantes, sob o fundo do estúdio. Posam ao lado de cachoeira e rochedos. Ganham intervenções cirúrgicas, análogas à redesignação de gênero, para a incorporação de guelras. Passam por uma lavagem dos rabos de peixe. Eles e elas posam para as luzes kitsch, queer, mágicas, absurdas.
Estes são os instantes em que o longa-metragem navega por um registro perigoso, pois eticamente ambíguo. Parece fornecer às pessoas as ferramentas para que se vejam como sempre sentiram, por um lado, mas o faz de maneira tão ostensiva, posada, teatralizada, que beira a ridicularização de seus personagens. Alguns sorrisos de distanciamento se tornam incômodos: estamos rindo com eles, ou rindo deles? Divertimo-nos porque a encenação é voluntariamente artificial, ou porque se trata de figuras esquisitas, bizarras? A direção respeita a peculiaridade destes indivíduos, ou os enxerga com o mesmo exotismo de quem presencia um espécime raro no zoológico?
Alguns elementos permitem sugerir a comicidade do escárnio. A amiga encontrada abruptamente pelo caminho veste um boné com a frase “As mulheres me querem. Os peixes me temem”. A montagem blasé-vaporosa do final serve tanto para reforçar a poesia do procedimento ficcional quanto para tornar Una e seus amigos ainda mais folclóricos, diferentes de nós. O procedimento soa eternamente indeciso entre tratar a subjetividade de seus personagens como algo perfeitamente corriqueiro, ou como algo muito, muito diferente, porque isso fornece mais possibilidades estéticas aos criadores. Afinal, estima-se que estas pessoas-sereias são exatamente como o espectador, ou totalmente distintas dele?
O discurso resulta muito mais claro na boca dos próprios personagens, que resgatam da fantasia a figura importantíssima do monstro. No terror, na ficção científica, ou na magia em geral, o monstro (aquático, dos ares, de outros planetas) sempre representou o outro, tornando-se uma potente figura para o imaginário queer. Nestas narrativas progressistas, os monstros não desejam se livrar de sua natureza monstruosa para inserir a sociedade média, pelo contrário, sonham em ser aceitos exatamente como são. Por isso, o orgulho da diferença, estampado em um diálogo: “De qualquer modo, a exclusão nos torna melhores”. Nossa diferença deixa de ser nossa desvantagem, nosso motivo de escárnio e segregação, para se converter em superpoder.
Una e seus colegas oferecem este olhar generoso e humilde ao seu mundo de realidade embebida na fantasia, ou ciência misturada ao misticismo, conforme explica a amiga. Não convém delimitar até qual ponto estas pessoas realmente se identificam, em sua essência, enquanto uma criatura mitológica. O fato é que tal identificação lhes traz paz de espírito, e isso deveria bastar ao olhar do interlocutor. A simplicidade deste raciocínio se transmite nas falas, embora se complique na atmosfera do sonho kitsch.
Pode-se questionar se a forma de Sirens Call representa a maneira mais potente e respeitosa de abraçar tamanha naturalidade. Talvez a mise en scène se sobreponha demais aos personagens, vaidosamente. De qualquer maneira, abre um espaço para falarem de si em liberdade, com uma honestidade ímpar, incomum ao cinema. Estas pessoas invisíveis socialmente se tornam personagens principais. Convertem-se em criaturas magníficas, em heróis posando à câmera. Para o bem ou para o mal, brilham sob os holofotes.