Tardes de Solidão (2024)

Morte em praça pública

título original (ano)
Tardes de Soledad (2024)
país
Espanha, França, Portugal
linguagem
Documentário
duração
125 minutos
direção
Albert Serra
com
Andrés Roca Rey
visto em
14º Olhar de Cinema (2025)

O toureiro Andrés Roca Rey se prepara para entrar na arena. Paramenta-se com dezenas de peças de vestuário, ajudado pela equipe. Escuta palavras de incentivo, além de uma descrição básica do animal (a forma dos chifres, seu temperamento, onde foi criado). Ele pisa no palco somente quando o touro já foi alvejado inúmeras vezes, e sangra para o prazer da plateia. O protagonista conduz seu adversário e o provoca, encarnando aos olhos da plateia certo imaginário de valentia. Ao final, enfia uma espada no corpo do inimigo, levando ao colapso do grande animal. Todos aplaudem. André deixa o local na condição de herói. 

Esta cena se repete pelo menos meia dúzia de vezes em Tardes de Solidão, de Albert Serra. O documentário se aproxima deste ícone em ascensão na tauromaquia, observando-o no exercício de sua profissão. Os planos são fechados tanto no rosto e corpo do jovem quanto no rosto e corpo do animal. Há apenas três tipos de espaços ao longo de mais de duas horas de duração: a arena, o interior da van que conduz Andrés e sua equipe ao próximo espetáculo, e o quarto onde o protagonista se veste. Através da repetição, e da atenção às minúcias, o cineasta busca compreender o passo a passo de um ritual próximo do êxtase religioso, no qual o sacrifício desempenha um papel fundamental.

A hombritude queer e performática da tourada precisa da aniquilação do outro para se materializar. Este é um cinema da violência, ao contrário da gentileza.

As imagens são, de fato, bastante chamativas. O diretor de fotografia Artur Tort satura as cores ao máximo, de modo que a areia adquire um tom de pó-de-ouro, enquanto o vermelho do sangue, dos trajes e do cenário marca a tela com agressividade. Serra não pretende ser sutil, assim como não estima ser discreto este show baseado no prazer da execução pública. Exagera nos ângulos, na cor, no trabalho de som, até se descolar levemente da realidade: esteticamente, estamos mais próximos da fábula fictícia do que do dito “documentário de observação”. Por isso, alguns espectadores enxergaram nesta beleza excessiva uma condescendência com os maus-tratos do animal, além de uma idealização de Andrés.

Ora, diversos fatores permitem dissociar o olhar do diretor de uma postura moralizante e julgadora. Este não é um filme em defesa das touradas, nem um filme contra as touradas. Antes de emitir qualquer posicionamento do gênero, o autor decide compreender onde está pisando, e quais são os processos extremamente codificados deste mundo à parte. Por mais que a câmera esteja próxima até demais, beirando a claustrofobia, em termos de atitude e mise en scène, pode-se falar num olhar distanciado. Isso porque nunca somos convidados a torcer por Andrés, a estimar que seria, de fato, um grande príncipe da tourada contemporânea, ou um jovem dotado de qualidades sobre-humanas, tal qual afirmam os membros de sua equipe.

Em primeiro lugar, Serra oculta a plateia. Os planos são cuidadosamente pensados para desfocar o rosto dos frequentadores, e fechar o enquadramento nos dois personagens em cena. Escutamos os barulhos de temor ou incentivo, os gritos de alívio e admiração, mas precisamos imaginar quem seriam os admiradores eufóricos desta prática. Com exceção de dois únicos planos, rumo ao final, quando alguns fãs são vistos junto a outro toureiro, o filme jamais associa Andrés ao público. Nem mesmo nas cenas da van, quando os pagantes insistem em parabenizá-lo e entregar presentes, o plano permanece fixo no homem que pede, em vão, para que as luzes do veículo se apaguem.

Isso significa que o espectador assume a função de plateia. Sem as centenas de indivíduos nas arquibancadas, o espetáculo da matança é oferecido para nós. O incômodo, em oposição ao maravilhamento, decorre deste ponto de vista privilegiado, muito próximo e detalhista, dos corpos se atacando. O assento VIP no qual somos colocados questiona nossa aderência e nosso voyeurismo em relação à prática. A montagem precisa de Serra e Tort garante, através da repetição, que a beleza se esvaia, que o encanto se perca ou diminua diante dos nossos olhos. Andrés é comparado ao animal sempre que possível: a língua para fora de ambos, o rosto animalesco do toureiro para provocar o bicho, o foco nos colhões de um e de outro.

Em segundo lugar, desconhecemos Andrés. Apesar de o observarmos obsessivamente, como sob um microscópio, o sujeito balbucia monossílabos, e raramente completa uma frase. Sabemos mais a respeito da origem e da personalidade dos touros do que aquela do humano, reduzido à corporeidade e à persona pública. A possível investigação de sua infância, sua formação e paixão pela tauromaquia teria provocado nossa identificação. Neste caso, em compensação, temos um corpo despossuído, que se machuca, mas nunca jamais em nível semelhante aos animais, cruelmente atacados em cada apresentação. Enquanto o touro morto é arrastado tal qual um pedaço de carne sobre a terra, deixando um rastro de sangue, o jovem ostenta suas raras feridas na condição de orgulhosas marcas de batalha.

Em terceiro lugar, a obra disseca os exageros desta irônica masculinidade. Por suas vitórias, o personagem é vangloriado enquanto macho de verdade. Adquire o status de homem fortíssimo, destemido, que cala a boca de centenas de pessoas graças à coragem de enfrentar um animal muito maior do que ele (em ambiente controlado, protegido, quando o touro já está seriamente ferido, mas passemos). Os participantes da comitiva de Roca Roy elogiam repetidas vezes os seus colhões gigantes, colhões de aço, seu abdômen fortíssimo. Enquanto isso, o rapaz faz caras e bocas afetadíssimas diante do inimigo, e se questiona a cada saída de cena. “Eu fui bem?”. Escuta, em retorno, exaltações megalomaníacas.

Nota-se um teor homoerótico neste espetáculo destinado a honrar a força masculina. A admiração dos personagens destina-se unicamente aos homens, numa trama desprovida de mulheres (nem mesmo sabemos de possíveis interesses amorosos de Andrés — uma prática costumeira em filmes buscando nossa identificação). A câmera acompanha o ato de vestir as longas-meias rosas e um tecido transparente e justíssimo, comprimindo o pênis. Adiante, o protagonista é erguido por um ajudante, de modo a entrar nas roupas apertadas — tal qual as moças tentando respirar dentro dos espartilhos no século XVII. Cada peça de vestuário brilha com pedrarias costuradas, valorizando o peitoral e liberando o movimento de quadril e pernas. 

Trata-se de um espetáculo queer. Este estranhamento em relação ao real promove a caricatura de uma sexualidade exacerbada, assemelhando-se ao ritual da preparação drag, ainda que inversamente atribuída ao imaginário da masculinidade. Na única e importantíssima cena em que a cadeira de Andrés está vazia na van, os colegas falam dele de maneira menos laudatória. Questionam sua atitude permissiva demais com touros fracos, colocando-se desnecessariamente em risco. Nada disso é reproduzido na presença de Andrés. A persona do toureiro é construída por diversos homens, que opinam acerca das expressões, do movimento dos braços, do melhor instante de atacar ou cansar o animal. Este super-homem fictício consiste numa criação coletiva. Ama-se a ideia de um toureiro perfeito, não exatamente Andrés e suas características bastante comuns (egocentrismo, insegurança, arrogância).

A todos que ainda defendem a “arte da tourada” enquanto homenagem à força e determinação do animal, basta ver a maneira humilhante como o animal é tratado. “Este touro é criminoso!”, reclamam alguns assistentes, após testemunharem a fera revidando as inúmeras agressões gratuitas que sofreu. “Volta para a vaca da sua mãe!”, grita outro, diante do corpo estatelado no chão. É fácil cantar vitória nestas circunstâncias. Tardes de Solidão revela uma encenação do poder. Ele insiste em mostrar que esta não é uma luta justa, nem uma questão de valentia, mas uma preparação cuidadosa para que o toureiro saia como vitorioso, mesmo que precise exagerar alguns movimentos e fingir outras dificuldades, no intuito de entreter o público. Serra admira este processo como quem assistiria a um macabro espetáculo de circo ou teatro — e fascinante justamente por ser macabro. Nossos olhos se fixam no horror assim como se fixam em acidentes automobilísticos na estrada: algo nos cativa na possibilidade simbólica de experimentar a morte (dos outros).

“A vida não vale nada. Você tem colhões”. Estas duas frases, aparentemente desconexas, porém intimamente costuradas por um personagem, resumem a obra na totalidade. A hombritude queer e performática precisa da aniquilação do outro para se materializar. O corpo de Andrés se torna cada vez mais animalesco, contorcido, ostentando o olhar maníaco e os lábios entreabertos. Encantamo-nos com este horror assim como admiramos um quadro como O Grito, de Edvard Munch. O colorido, a proximidade e o foco ininterrupto no herói não significam adesão, mas a recusa a nos permitir desviar o olhar. Sim, vamos testemunhar cada morte, cada grito do touro ou gesto de Andrés, que queiramos ou não. Este é um cinema da violência, ao contrário da gentileza.

Em paralelo, Serra e sua pequena equipe demonstram um controle impensável do ponto de vista, das luzes, da captação e edição de som. A câmera aparenta estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sempre apta a registrar minúcias de gestos. Quando se cobra de documentários brasileiros que estejam preparados para representar o acaso, é desta disposição que se fala: o longa-metragem espanhol-francês-português certamente estudou muitíssimo seu objeto de estudo antes de levar uma câmera ao mundo. Nota-se uma dedicação obsessiva não à figura de Andrés, mas aos ritos e danças deste balé. Através de mínima intervenção no meio, o cineasta dispõe de material farto, e cuidadosamente selecionado para provocar a sensação de pavor.

(Alerta: spoiler a seguir)

Na cena final, o dispositivo decide abandonar, enfim, Andrés. O plano se abre, e as falas dele e dos colegas são emudecidas. O toureiro deixa a arena, porém a câmera não o segue mais. Tardes de Solidão começa no longo plano de um touro, também captado com atenção a cada movimento do animal, e termina com o ser humano deixado à própria sorte. A trilha sonora, por um momento, sugere um tom engrandecedor e sentimental, para logo substituir os acordes por uma composição dissonante, estranha, horrorosa. Os aplausos do público são calados pela montagem de som, enquanto nos resta somente a partida ambígua, nada apologética, deste príncipe da morte. O dispositivo permanece na arena vazia, manchada de sangue aqui e acolá. Vão-se os toureiros, ficam as mortes. 

Tardes de Solidão (2024)
10
Nota 10/10

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