Terra Selvagem (2017)

A pose dos brutos

título original (ano)
Wind River (2017)
país
EUA, Reino Unido, França
gênero
Drama, Policial
duração
107 minutos
direção
Taylor Sheridan
elenco
Jeremy Renner, Elizabeth Olsen, Graham Greene, Julia Jones, Jon Bernthal, Tantoo Cardinal, Kelsey Asbille, Eric Lange, Gil Birmingham, Martin Sensmeier, Tyler Laracca, Ian Bohen
visto em
Netflix

Terra Selvagem parte do desejo de representar um mundo agressivo. O diretor e roteirista Taylor Sheridan imagina uma comunidade embrutecida tanto pela natureza impiedosa (isolada das demais cidades, sempre coberta de neve) quanto pela ausência de leis que funcionem, de fato, na região. Há policiais, xerifes e delegados aos montes, porém nenhuma sensação de justiça. Multiplicam-se os casos de assassinado, feminicídio, estupro, acerto de conta entre gangues. Não há oportunidade de emprego, lazer, de futuro profissional — permanecem no local apenas aqueles que não conseguiram partir, por falta de dinheiro ou de coragem.

Não se sabe ao certo em qual categoria se insere Cory Lambert (Jeremy Renner), protagonista desta trama. “Eu não saio daqui”, insiste rumo à conclusão, a um colega indígena, após testemunhar mais algumas mortes. Isso faz dele, aos olhos da direção, um sujeito ainda mais resistente, leal e confiável. O caçador da prefeitura, responsável por abater ursos e leões, sofre com o homicídio não-solucionado da filha adolescente. No entanto, engole as lágrimas e segue trabalhando. Sem a filha, e divorciado da esposa, ele parece seco de afetos, o que o tornaria, por este olhar pragmático, ainda mais habilidoso no ofício de perseguir animais selvagens.

Neste contexto, a chegada da policial Jane Banner (Elizabeth Olsen), do FBI, produz pouco efeito prático, em termos de resolução do conflito. Ela é chamada para investigar o estupro e assassinato de uma jovem, cujo namorado desapareceu. A mulher nunca avança nos interrogatórios, nem descobre pistas relevantes. Arrogante e acostumada aos centros urbanos (“Eu sou tudo o que vocês têm”, dispara), contenta-se em escutar, dos habitantes locais, que o interior dos Estados Unidos possui regras muito mais difíceis do que em Los Angeles. “As coisas não funcionam desta maneira aqui”, repetem os coadjuvantes à forasteira.

A vontade de embrutecer relações e personagens atinge uma construção exagerada, ao limite do cômico. […] Os diálogos estão carregados de frases de efeito, umas mais improváveis que as outras.

Em especial, esta mulher desempenha o papel de olhar do público, que se supõe alheio ao contexto violento das terras indígenas. Com Jane em cena, os personagens podem explicar a dinâmica do local diretamente ao público, garantindo que nossa surpresa encontre elo de identificação nas imagens. Até por isso, chegando a 1h15 de narrativa, a verdade é simplesmente revelada ao espectador num flashback didático, sem qualquer mérito da policial, como se a montagem tivesse se cansado se sustentar o suspense. O ponto de vista é feito para nós, para o espectador de fora das planícies austeras de Montana. Esta crueldade é concebida ao olhar estrangeiro, razão pela qual se acentuam seus traços, de maneira didática, para serem melhor percebidos e sentidos. 

Sheridan busca impressionar com esta espécie de submundo do crime a céu aberto, em planos diurnos. Estas constituem as principais qualidades do filme: a capacidade de desenvolver tensão em plena luz do dia, e sugerir perigo nos espaços aparentemente pacíficos da natureza isolada. Demora-se 30 minutos em trenó para chegar a um corpo; mais de uma hora para se atingir a estrada. A adolescente falecida percorreu 9 km na neve, descalça, sendo descrita como uma “guerreira” inúmeras vezes por Cory. O diretor favorece o deslocamento, a sensação de pesar e de dificuldade dos processos. A demora em resolver qualquer conflito favorece a impressão de uma criminalidade crônica, sem perspectiva de melhoria.

No entanto, a vontade de embrutecer relações e personagens atinge uma construção exagerada, ao limite do cômico. Aqui, todos sustentam carrancas profundas, olhares perdidos no horizonte, além de uma voz que ressoa para dentro, digna de pessoas que já viveram muitas dores, e se depararam com muitas mortes. O elenco faz pose de durão, aprofunda os trejeitos do caubói, do caipira, do policial rígido. Estamos no limiar da caricatura quando Cory encontra a ex-esposa, e ela utiliza uma voz ainda mais grave do que de costume para elencar seus defeitos. Adiante, o caçador e Ben (Graham Greene), chefe da polícia indígena, discutem de modo banal uma série de homicídios, porque já estariam acostumados com isso. A direção pede que parem no ponto exato dos enquadramentos, admirem um lugar distante, e soltem as frases com sotaque forte, num tom encardido, resignado, calejado.

Os diálogos estão carregados de frases de efeito, umas mais improváveis que as outras. “Não pegamos lobos olhando onde possam estar, mas onde estiveram”, explica Cory a Jane, referindo-se à busca pelo assassino. “Ela é uma guerreira. Não importa o quanto você ache que ela correu; ela correu mais”, insiste, sobre a vítima de feminicídio. “Sabe como é viver nesse inferno congelado? Não tem mulheres, não tem diversão”, contestam os bandidos. Estas frases são despejadas sem humor, sem autoironia, sem senso de absurdo. Os atores encarnam heróis aguerridos de um imaginário de desenho animado.

A estética acompanha a romantização do campo. Uma trilha sonora imponente acompanha cada diálogo de bravura, e a câmera abre o escopo para filmar a terra coberta de neve sempre que possível. Quando recebe um spray de pimenta nos olhos, Jane percorre a casa de possíveis bandidos, e a câmera escolhe uma subjetiva catártica da visão comprometida, utilizando um filtro exagerado para borrar a nitidez. Ao descobrir a morte da irmã, um rapaz drogado grita: “O quê? O quêêê?”, e a câmera abre o plano, para sua voz ecoar no terreno vazio. O diretor nunca percebe o quão próximo se situa da paródia do filme de caubói, ao invés de uma descrição naturalista de uma comunidade marginalizada real.

Apaixonado pelo aspecto taciturno, o filme jamais esconde seu desprezo por Jane, nem a admiração por Cory. Por mais que homem e mulher compartilhem a cena, chegado o momento dos tiros e encontros definitivos, a mocinha estará em perigo, precisando ser resgatada pelo gentil caçador, que não consegue ficar longe dela. Assim — adivinha? —, o pai em luto sentirá que, enfim, conseguiu proteger uma mulher indefesa, algo que não conseguiu fazer com a própria filha. Todo o quiproquó envolvendo dezenas de homens de setores e gangues diferentes se resume a uma metáfora do luto deste macho emasculado, precisado provar novamente sua potência e capacidade de matar inimigos e proteger mulheres. 

Restituída a função do macho alfa, a história se encerra, pois não havia mais nada a contar ali. Terra Selvagem tem pouco a dizer a respeito da marginalidade, ou da resistência dos povos indígenas diante da omissão do Estado. Ao invés de criticar o vácuo de proteção institucional, prefere valorizar os heróis à moda antiga, que resolvem suas pendências no muque. Ao invés do senso de justiça, privilegia-se a vingança, numa ode ao “olho por olho, dente por dente”. Isso se torna particularmente claro na cena envolvendo um homem perdido na neve. Sheridan acaba por fetichizar os crimes que pretende denunciar. Por isso, os letreiros finais, a respeito do desaparecimento de mulheres indígenas, soa despropositado. Afinal, o longa-metragem nunca constituiu um retrato da morte de Natalie (Kelsey Asbille), apenas uma ode à força do homem que conseguiu vingá-la.

Terra Selvagem (2017)
4
Nota 4/10

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