É madrugada numa gigantesca planície coberta de neve. Os animais passeiam, saem de suas tocas. O cenário pode parecer banal ao espectador, até se perceber um garotinho despertando no chão congelado. Ele olha para os lados, não encontra nenhum conhecido. “Onde estou? Clara! Clara!”, grita, conforme anda a esmo, durante mais de um dia, com frio e fome. O registro de uma pequena criança abandonada, porém acompanhada de perto pela câmera, parece brutal. Ora, por que não sentimos a mesma apreensão diante dos veados em situação semelhante?
A cena inicial de The Human Hibernation provoca um efeito fortíssimo. Ela dura vários minutos, e sugere a morte do pequeno em meio à natureza, em pose sacrificial. A diretora Anna Cornudella Castro se arrisca com esta aposta, podendo ganhar a adesão do espectador, ou perdê-la por completo (algumas pessoas abandonaram a sala de cinema após a abertura). De qualquer modo, nenhuma outra sequência provocará impacto semelhante depois disso — outro risco considerável corrido pela autora e pela montagem.
Segue-se então uma curiosa proposta de inversão dos espaços e comportamentos, entre animais racionais e animais irracionais, ou entre a natureza domesticada, e aquela dita “selvagem”. Por um lado, os seres humanos são levados às florestas, onde se farejam e comportam tais quais onças ou ursos. Por outro, cabras e galinhas adentram uma casa em estado de abandono, passeando onde querem. Algumas vacas se sentam sobre os restos de um sofá, enquanto escutam uma serenata de “Fly Me to the Moon” por um cantor.
Os protagonistas compõem um mosaico avesso a qualquer forma de hierarquia entre os bichos e os humanos. Nenhum ator será mais importante do que vacas ou lesmas.
A narrativa é composta por estas esquetes, relativamente independentes, cujo estranhamento constitui uma finalidade. O jantar com seis pessoas comendo feito porcos, de maneira apressada e desordenada, nos remete aos conceitos de civilização, e a um ideal de costumes não partilhados pelos bichos. Talvez apenas reforce os laços evidentes entre estas espécies de animais, capazes de comportamentos violentos ou gregários, de proteção e abandono. Ao nos retirar do habitat natural, literalmente, demonstra o paralelo entre as diferentes formas de estar no mundo.
Por isso, o longa-metragem elege alguns personagens humanos que se sentam numa poltrona e conversam com o dispositivo, de maneira próxima ao documentário tradicional. Podem estar apenas conversando um com o outro, posto que ambos ocupam a mesma casa. No entanto, a escolha de ângulos e a artificialidade do procedimento (a poltrona disposta no centro do cômodo vazio e sujo, porém bem iluminada, em ângulo propício à câmera) sublinha a escolha de mise en scène para as câmeras.
Estas pessoas lembram o irmãozinho desaparecido (o menino da cena inicial), ou o dia em que foi abandonado pela mãe, “como um animal”. A expressão retorna para o rapaz criado por três homens, “como animais”. Uma colecionadora exibe seu olho de vaca conservado num jarro, pois o globo ocular certamente teria visto realidades distintas da sua. Outro evoca o encontro com vacas paradas que o encaravam, em ritual de luto e respeito, como se compreendessem seu estado de espírito. Esta descrição será materializada adiante.
É difícil pensar em “narrativa”, no sentido convencional do termo, diante destas provocações conceituais, mais próximas de um cinema experimental. A montagem poderia orquestrar suas cenas em ordens totalmente distintas, posto que não representam a causa nem consequência umas das outras. Elas tampouco avançam o discurso rumo a uma mensagem precisa. Tornam-se veículos para uma fricção de ordem estética, uma brincadeira (política, sem dúvida) com nossa percepção de superioridade em relação ao resto da natureza. Aqui, descobrimo-nos frágeis, carentes, e menos resistentes à adversidade do que as espécies subjugadas por nós.
Estranha-se, em contrapartida, que os personagens conversem em inglês nesta obra espanhola, que jamais especifica a época ou local onde se situa. Os protagonistas soam escolhidos por acaso, a exemplo de uma reportagem disposta a escutar qualquer passante a respeito de um tema específico. Eles jamais se desenvolvem, ou aprofundam, nem sofrem uma transformação clássica. Compõem uma paisagem e um mosaico avesso a qualquer forma de hierarquia entre os bichos e os humanos. Nenhum ator, aqui, será mais importante do que vacas ou lesmas.
No final, letreiros avisam o espectador de que nenhum animal foi machucado ou sedado para a produção, e que os criadores valorizam a natureza tal como é. Trata-se de uma precaução válida, posta a engenhosidade das imagens. A cineasta também sugere que não utiliza os animais apenas enquanto tema de estudo, mas se preocupa de fato com o ambiente ao redor, condicionando a leitura do espectador para uma iniciativa menos vaidosa por parte da direção do que generosa com a paisagem retratada.
PS: Para um filme falado em inglês, e legendado em inglês para os festivais internacionais, surpreendem os erros na legenda, que traduzem algo diferente daquilo dito pelos personagens, e modificam o teor de seus depoimentos por inatenção. Algo nesta cópia, exibida no Festival de Berlim, sugere a finalização às pressas.