Jeanne (Clara Pacini) foge do local onde mora, mas não sabemos ao certo o porquê. Ela corre riscos em pleno inverno, sem ter onde dormir, porém, tampouco compreendemos para onde se desloca. Carrega consigo um colar de contas, ainda que o valor deste objeto permaneça em segredo. Alguns destes mistérios serão desvendados ao longo da trama de The Ice Tower — mas não todos. A diretora Lucile Hadžihalilović se preocupa pouco com a psicologia ou a história pregressa de suas personagens. O foco dela se encontra em tudo aquilo que pode ser exteriorizado, ou seja, convertido em ação.
Por isso, seu encontro com a diva Cristina van Den Berg (Marion Cotillard) ocorre de modo igualmente pragmático: a adolescente conhece a atriz na encenação da Rainha de Neve para um longa-metragem. Decide, então, roubar um brilhante do vestido dela. Encanta-se com a figura enigmática e glacial, que corresponde aos seus desejos profundos — a garota sempre foi apaixonada por este conto, que conhece de cor. Supõe-se, então, que o destino a tenha encaminhado propositadamente para a materialização de sua história preferida. Para além de abordar uma fábula conhecida, o longa-metragem busca construir sua própria estrutura fabular.
O filme sustenta uma aparência lânguida, de óbvio homoerotismo feminino, ainda que demore a providenciar a mínima concretização dos desejos.
A narrativa recusa de imediato o naturalismo. É claro que este mundo é concebido para a jovem em fuga, oferecendo-lhe de imediato a possibilidade de se inserir na filmagem cinematográfica e adquirir cargos de importância crescente no projeto. Ela dorme diversas noites sobre os figurinos, pelos corredores, sem ser incomodada. Adiante, recebe de bom grado a estadia num hotel de luxo. Trata-se de uma narrativa de sedução, como se o presente fosse grande demais e, cedo ou tarde, fosse cobrado o preço de tamanha generosidade. Alice conhece seu país de maravilhas, e então descobre os perigos do local.
Para além dos golpes de sorte, a estética se envolve numa atmosfera de sonho lisérgico. Os personagens e acontecimentos deslizam pelos cenários como se estivessem posando para a câmera, com os olhos semicerrados, entorpecidos. Correspondem ao imaginário da diva e da pequena Branca de Neve, perdida numa floresta ameaçadora. Comunicam-se em falas sussurradas, do tipo que profere abominações com um doce sorriso nos lábios. As interações pertencem quase sempre ao domínio do feitiço, com o diferencial que as provocações e encantamentos ocorrem sobretudo por motivos escusos, interessados, nada genuínos. Seduz-se quando se estima ter algo a ganhar neste jogo.
Por este motivo, a obra inteira sustenta uma aparência lânguida, de óbvio homoerotismo feminino, ainda que demore a providenciar a mínima concretização dos desejos. Hadžihalilović promove uma obra tão infantil, em suas simbologias, quanto erótica, nas pulsões representadas em tela. Algo sutil e explícito; discreto, mas também evidente. Estranho jogo de referências (quem não conhece a Rainha da Neve?) que pretende constituir uma narrativa totalmente independente de atração e repulsa entre mulheres. Mesmo as implicações da relação simbólica entre mãe e filha serão verbalizadas pelas protagonistas.
The Ice Tower flerta às vezes com o cinema de terror, nas fortes cenas envolvendo um corvo. Aproxima-se de um conto impressionista nas cenas de madrugada, passeando pelo cenário de neve falsa; e sugere um mergulho metalinguístico na magia do cinema, capaz de provocar um efeito magnético através de cenários pintados e uma luz superexposta. Infelizmente, nenhum destes caminhos é aprofundado. A explosiva Cristina e a ingênua Jeanne se atraem num jogo de sadomasoquismo que parece convir a ambas, mas que tampouco é levado às últimas consequências pela direção. Há inúmeros fios de narrativa, jamais aproveitados.
A direção prefere investir todo o seu esforço na ambientação baseada na neve, na montanha infinita, no castelo real onde vive a atriz. Trata-se de um filme plasticamente opressor, com muitas poses e uma composição de asfixiante nível de controle por parte da mise en scène. No entanto, resta pouco humanismo por baixo dos arquétipos de Lolita e Norma Desmond, ou Christine contra Carlota. Elas correspondem a imaginários de feminilidade, nunca a figuras providas de subjetividades delimitadas.
Às atrizes, cabe corresponder ao jogo de personagens interpretando personagens. Marion Cotillard encarna a figura potencialmente maléfica (ou apenas vaidosa e egocêntrica?), que finge desmontar suas máscaras para a garotinha apaixonada. Já Clara Pacini arregala os grandes olhos pretos, preserva a postura e o corte de cabelo infantis, ilustrando a ingenue. Por isso, quando a sexualidade enfim explode em cena (de maneira bastante referencial, para um projeto tão propenso às metáforas), o instante possui um estranho caráter de abuso.
No final, La Tour de Glace (no original) arrasta-se entre sugestões que nunca deseja concretizar (as drogas consumidas por Cristina, por exemplo) e um perigo que jamais se converte em algo realmente potente. Soa como um extenso e monótono desfile de moda, uma arte conceitual para a narrativa que nunca se inicia de fato. Carece de verve, tensão e coragem para converter sugestões tão violentas (o pressuposto do sacrifício) em algo mais marcante do que uma propaganda de perfume com a temática do inverno. Falta elaborar o conteúdo sob a embalagem brilhosa.