Uma família progressista. O pai (Lars Eidinger) trabalha como publicitário em campanhas que visam melhorar o mundo. A mãe (Nicolette Krebitz) se dedica a implementar um teatro numa área carente em Nairobi, Quênia. A filha adolescente passa a madrugada com colegas em festas, enquanto o irmão gêmeo se consagra às competições em jogos de Realidade Virtual. Ninguém dá satisfação aos demais — eles nem mesmo sabem quando os outros se encontram em casa. Quando a filha engravida, o pai a leva à clínica de aborto, sem maiores perguntas, e depois volta para buscar a sua garotinha.
É difícil determinar em que medida o diretor Tom Tykwer nutre carinho por esses personagens, e a partir de qual ponto começa a ridicularizá-los. The Light se situa na linha tênue entre o clássico drama de uma família em crise e a sátira da esquerda progressista, presa num mundo ideal a ponto de perder qualquer laço com a sociedade real. A frase “Nós somos uma típica família disfuncional alemã”, proferida pela filha, permite enxergar o limite entre tons. “É culpa nossa que o mundo está tão fudido!”, ela grita aos pais, em relação à vida hipócrita de ambos. No dia seguinte, o publicitário transforma a frase num slogan lucrativo.
No início, o roteiro nem mesmo apresenta estes quatro personagens enquanto parentes. Começamos a trama em pleno turbilhão, enxergando diversas vidas em paralelo, questionando a possível configuração de um mosaico abrangente acerca das relações contemporâneas. Uma mulher síria (Tala Al-Deen), encarando um dispositivo eletrônico que projeta luz em seu rosto, compõe o curioso panorama. Mais tarde, ela se tornará a faxineira desta família que tanto lembra a sua própria, deixada em Damasco. Com formação em psicologia, ela começa a ajudá-los rumo à reaproximação.
The Light se situa na linha tênue entre o clássico drama de uma família em crise e a sátira da esquerda progressista. É difícil determinar em que medida o diretor Tom Tykwer nutre carinho por esses personagens, e a partir de qual ponto começa a ridicularizá-los.
O cineasta possui ambições muito, muito amplas neste projeto de 2h42 de duração. Ele situa a trama entre Alemanha, Quênia e Síria. Percorre o drama tradicional, a comédia, a animação, o musical (com números de canto e dança situados em grandes avenidas da capital alemã). Percebe-se com facilidade a mão de um dos criadores de Sense8 (2015 – 2018) e A Viagem (2012), apaixonado por caleidoscópios do mundo inteiro, alternando entre estilos e tons, incluindo diversas histórias paralelas. The Light dá continuidade a esta ambição, alternando melodrama com instantes dignos de videoclipes.
O gesto da direção soa ambicioso, mas também vaidoso. Remete a uma criança rica, que deseja brincar com todos os jogos e bonecos mais novos do mercado. No entanto, cansa-se com rapidez, trocando um gadget por seguinte, em busca de estímulos mais interessantes. O filme, em sua totalidade, assemelha-se ao quarto bagunçado deste garotinho, ao final de mais de duas horas de brincadeira. Existe um pouco de tudo, e muitos instantes brilham, até serem esquecidos e substituídos pelos demais. Mostram-se tão interessantes quanto descartáveis, intercambiáveis.
A direção liga e desliga a atenção em cada núcleo narrativo a exemplo do aparelho piscante, que supostamente tornaria as pessoas mais suscetíveis a canalizarem suas dores profundas, ou algo semelhante (a descrição de suas funções beira, igualmente, a sátira de produtos milagrosos em programas vespertinos de TV). Nunca se entende ao certo de onde provém o produto, nem a origem do acesso de Farrah ao objeto tão cobiçado. Enquanto novum do segmento em ficção científica, ele serve sobretudo a acelerar conflitos e otimizar processos de tensão. A generosidade dos membros familiares, abrindo-se com facilidade à mulher recém-chegada, reflete esta fagulha de otimismo e ingenuidade que Tykwer imprime à obra inteira.
No percurso, nota-se a vontade em surpreender e chocar o espectador. Em meio a um momento dramático convencional, entra um extravagante número musical ao som de Bohemian Rhapsody, do Queen (o tema central do filme, que retorna com frequência). Depois de uma aproximação familiar, a garota pedala através de um videoclipe com projeções dispersas, relacionadas à libertação feminina (flashes de mulheres lutando pelo direito ao aborto, imagens de fetos, etc.). Trabalha-se no imperativo da mudança, de um cinema pop, marcado por limitada concentração e contemplação. Um cinema em pisca-pisca.
Na saída da sala de cinema, representantes da imprensa revelavam que a experiência não havia sido desagradável, nem excessivamente longa — a duração se preenchia muito bem. Entretanto, era difícil dizer do que The Light tratava, ao certo, ou o que Tykwer teria a dizer a respeito de suas dezenas de temas simultâneas. Ao final, é mais fácil nos atentar à chuva ininterrupta da narrativa; às cenas do terço final, mergulhando de vez na fantasia; e ao apartamento claustrofóbico, escuro e soterrado de cartazes, onde vivem os familiares. Lembramos em especial dos tiques, das extravagâncias, das bizarrices no movimento de câmera, na montagem, na trilha sonora.
Já as questões ambientais, ou a respeito de aborto, divórcio, guarda dos filhos, hipocrisia dos setores progressistas, orientação sexual, identidade de gênero, crise matrimonial e problemas sexuais, são deixados em segundo plano. Recebem o mesmo tratamento do cadáver que se decompõe (literalmente) no chão da cozinha, porque os familiares estão preocupados demais com os próprios problemas para enxergar os outros. Estas e outras metáforas evidentes (a ampulheta com água) comprovam a vocação de Tykwer enquanto grande estilista de imagens, embora seja um contador de histórias de alcance questionável, e um pensador contemporâneo ainda menos eficaz.