Toda Noite Estarei Lá (2023)

Resistência solitária

título original (ano)
Toda Noite Estarei Lá (2023)
país
Brasil
Linguagem
Documentário
duração
72 minutos
direção
Suellen Vasconcelos, Tati Franklin
com
Mel Rosário
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Para o retrato da transfobia e da intolerância religiosa no Brasil atual, as diretoras Suellen Vasconcelos e Tati Franklin optam por acompanhar um caso muito específico: a proibição da ativista Mel Rosário, no Espírito Santo, de assistir ao culto evangélico próximo de sua casa. Por ordem dos pastores, a mulher transexual é detida na porta, sob pretextos absurdos: dizem que o lugar estaria cheio; alegam que ela precisaria se tornar membro. Às vezes, em chave claramente odiosa, sugerem que ela seria aceita caso retornasse de cabelo cortado e com trajes masculinos. Enquanto isso, as portas seguem abertas a todos os frequentadores cisgênero.

As autoras compreendem o peso simbólico deste caso enquanto metonímia de um país conservador. A luta da protagonista ocorre entre 2016 e os anos atuais, atravessando a eleição de Jair Bolsonaro e o fortalecimento de grupos reacionários que se sentiram legitimados pelas falas do novo presidente. O documentário vai às ruas durante protestos progressistas, filma marchas de mulheres carregando faixas contrárias à extrema-direita. Na festa de aniversário de Mel, ela frisa sua admiração por Lula, enquanto colegas gritam o nome de seu sucessor. 

Além disso, a mulher constitui uma figura atípica, no sentido de professar uma fé e compartilhar de crenças mais próximas da direita, que votou em peso pelo candidato conservador. Criada sob os preceitos das Testemunhas de Jeová, ela pinta salmos na parede de casa e escreve palavras de amor a Deus. Mel é profundamente religiosa, e igualmente convicta de sua luta política pelos direitos civis LGBTQIA+. Portanto, o longa-metragem aposta nesta figura enquanto catalisadora de inúmeros conflitos que atravessam o país.

O foco pontual na insistência de Mel permite conhecer o mecanismo perverso do culto evangélico. […] Mas o roteiro fecha os olhos a diversas questões importantes de ordem social e psicológica.

O foco pontual na insistência de Mel, noite após noite (de onde surge o título), produz efeitos positivos e negativos. Por um lado, permite conhecer o mecanismo perverso do culto evangélico, que mantém as portas fechadas a ela, apesar da vitória da cabeleireira na justiça. Vemos a caminhada da heroína, de sua casa até o local de pregação, além das dezenas de placas com palavras de justiça social e amor ao próximo. Descobrimos o silêncio dos guardas, o desconforto dos pastores ao chegarem e saírem ao imóvel, e a tentativa de intimidar a equipe de cinema com telefones celulares gravando a filmagem. Percebe-se o tempo passar, assim como as hesitações da fiel rejeitada, entre a coragem e a tristeza.

Por outro lado, o roteiro fecha os olhos a diversas questões importantes de ordem social e psicológica. Essa mulher ama alguém, possui um relacionamento amoroso com alguém? Teve dificuldade para estabelecer seu salão, possui uma clientela fixa? Como foi sua primeira experiência neste culto, e nos locais religiosos antes desse? Como se manifestam os vizinhos ao lado, que a presenciam comprar um carro próprio e a veem sair de casa para protestar diariamente? O que pensam os amigos, posto que a única colega próxima surge no terço final? Como ela percebe as contradições da mãe, que ora lhe chama pelos pronomes femininos, ora retorna aos masculinos? 

As indagações persistem: como ela conheceu o advogado que a defende durante muitos anos, e que experiência possui este homem na defesa dos direitos civis LGBTQIA+? De que maneira se comportam os membros da equipe, que se filmam e se convertem em personagens, ao escutarem insultos transfóbicos odiosos dos profissionais que trabalham com o juiz? O irmão que mora fora do Brasil conversa com ela frequentemente? Outras pessoas trans na região passaram por tratamento semelhante, ou Mel foi a primeira? Há cultos dispostos a aceitá-la nas redondezas, e que raciocínio desenvolvem a respeito da pluralidade sexual e de gênero? O que pensam os frequentadores do culto que acenam amigavelmente à manifestante? Haveria uma infinidade de temas fundamentais para se aprofundar na questão, contextualizá-la, inseri-la num universo de causas e consequências. Mas o roteiro, de olhos fixados em seu microscópio, captura apenas as idas e voltas à porta do culto, dia após dia, com exceção das já citadas passagens por protestos.

Na ausência desta investigação, o caso citado pode soar como um dilema isolado, pouco representativo do conjunto mais amplo. O que nos garante que a situação de Mel espelhe aquela de outras cidadãs transexuais religiosas? Em virtude das óbvias pretensões sociológicas da iniciativa, uma pesquisa mais ampla seria necessária. Um simples acompanhamento dedicado do dia a dia permitiria inseri-la no tecido comunitário, justificando a psicologia complexa de uma pessoa tão disposta a brigar e a acatar insultos, na certeza de que, eventualmente, o amor prevalecerá. 

Além disso, há deficiências notáveis de som e imagem. Posicionada ao lado de sua protagonista, a equipe nem sempre está pronta para filmá-la, quando esta começa a apresentar alguma fala de interesse. Neste instante, a câmera treme, teima em se ajeitar, a formar o enquadramento até enfim captá-la. Há pouco preparo e técnica para abarcar o acaso, algo que seria indispensável para uma obra com tamanha abertura a interações não-condicionadas. Já a captação de som dentro de casa, nas conversas com a mãe, possui muitas deficiências, entre o eco e outros ruídos. Apenas na rua, com suas placas, em frente ao culto, o som se torna cristalino. A diferença de qualidade entre ambos os materiais transparece problemas de produção.

Ressalvas à parte, o projeto consegue oferecer uma singela introdução à personagem. A coragem de Mel se encontra igualmente no ato de se expor ao filme, abrindo as portas de casa, podendo receber uma nova resposta negativa dos juízes diante da câmera. A cabeleireira se oferece com um misto de sinceridade, humildade e predisposição ao martírio simbólico — movimentos compreensíveis para uma mulher tão religiosa. Ela possui falas articuladas e convicções bem estabelecidas nas conversas com as diretoras. Conhecemos pouco de seu mundo e das complexas relações sociopolíticas do Brasil pós 2016, porém entendemos a base de seu pensamento.

Toda Noite Estarei Lá (2023)
5
Nota 5/10

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