Para o retrato da transfobia e da intolerância religiosa no Brasil atual, as diretoras Suellen Vasconcelos e Tati Franklin optam por acompanhar um caso muito específico: a proibição da ativista Mel Rosário, no Espírito Santo, de assistir ao culto evangélico próximo de sua casa. Por ordem dos pastores, a mulher transexual é detida na porta, sob pretextos absurdos: dizem que o lugar estaria cheio; alegam que ela precisaria se tornar membro. Às vezes, em chave claramente odiosa, sugerem que ela seria aceita caso retornasse de cabelo cortado e com trajes masculinos. Enquanto isso, as portas seguem abertas a todos os frequentadores cisgênero.
As autoras compreendem o peso simbólico deste caso enquanto metonímia de um país conservador. A luta da protagonista ocorre entre 2016 e os anos atuais, atravessando a eleição de Jair Bolsonaro e o fortalecimento de grupos reacionários que se sentiram legitimados pelas falas do novo presidente. O documentário vai às ruas durante protestos progressistas, filma marchas de mulheres carregando faixas contrárias à extrema-direita. Na festa de aniversário de Mel, ela frisa sua admiração por Lula, enquanto colegas gritam o nome de seu sucessor.
Além disso, a mulher constitui uma figura atípica, no sentido de professar uma fé e compartilhar de crenças mais próximas da direita, que votou em peso pelo candidato conservador. Criada sob os preceitos das Testemunhas de Jeová, ela pinta salmos na parede de casa e escreve palavras de amor a Deus. Mel é profundamente religiosa, e igualmente convicta de sua luta política pelos direitos civis LGBTQIA+. Portanto, o longa-metragem aposta nesta figura enquanto catalisadora de inúmeros conflitos que atravessam o país.
O foco pontual na insistência de Mel permite conhecer o mecanismo perverso do culto evangélico. […] Mas o roteiro fecha os olhos a diversas questões importantes de ordem social e psicológica.
O foco pontual na insistência de Mel, noite após noite (de onde surge o título), produz efeitos positivos e negativos. Por um lado, permite conhecer o mecanismo perverso do culto evangélico, que mantém as portas fechadas a ela, apesar da vitória da cabeleireira na justiça. Vemos a caminhada da heroína, de sua casa até o local de pregação, além das dezenas de placas com palavras de justiça social e amor ao próximo. Descobrimos o silêncio dos guardas, o desconforto dos pastores ao chegarem e saírem ao imóvel, e a tentativa de intimidar a equipe de cinema com telefones celulares gravando a filmagem. Percebe-se o tempo passar, assim como as hesitações da fiel rejeitada, entre a coragem e a tristeza.
Por outro lado, o roteiro fecha os olhos a diversas questões importantes de ordem social e psicológica. Essa mulher ama alguém, possui um relacionamento amoroso com alguém? Teve dificuldade para estabelecer seu salão, possui uma clientela fixa? Como foi sua primeira experiência neste culto, e nos locais religiosos antes desse? Como se manifestam os vizinhos ao lado, que a presenciam comprar um carro próprio e a veem sair de casa para protestar diariamente? O que pensam os amigos, posto que a única colega próxima surge no terço final? Como ela percebe as contradições da mãe, que ora lhe chama pelos pronomes femininos, ora retorna aos masculinos?
As indagações persistem: como ela conheceu o advogado que a defende durante muitos anos, e que experiência possui este homem na defesa dos direitos civis LGBTQIA+? De que maneira se comportam os membros da equipe, que se filmam e se convertem em personagens, ao escutarem insultos transfóbicos odiosos dos profissionais que trabalham com o juiz? O irmão que mora fora do Brasil conversa com ela frequentemente? Outras pessoas trans na região passaram por tratamento semelhante, ou Mel foi a primeira? Há cultos dispostos a aceitá-la nas redondezas, e que raciocínio desenvolvem a respeito da pluralidade sexual e de gênero? O que pensam os frequentadores do culto que acenam amigavelmente à manifestante? Haveria uma infinidade de temas fundamentais para se aprofundar na questão, contextualizá-la, inseri-la num universo de causas e consequências. Mas o roteiro, de olhos fixados em seu microscópio, captura apenas as idas e voltas à porta do culto, dia após dia, com exceção das já citadas passagens por protestos.
Na ausência desta investigação, o caso citado pode soar como um dilema isolado, pouco representativo do conjunto mais amplo. O que nos garante que a situação de Mel espelhe aquela de outras cidadãs transexuais religiosas? Em virtude das óbvias pretensões sociológicas da iniciativa, uma pesquisa mais ampla seria necessária. Um simples acompanhamento dedicado do dia a dia permitiria inseri-la no tecido comunitário, justificando a psicologia complexa de uma pessoa tão disposta a brigar e a acatar insultos, na certeza de que, eventualmente, o amor prevalecerá.
Além disso, há deficiências notáveis de som e imagem. Posicionada ao lado de sua protagonista, a equipe nem sempre está pronta para filmá-la, quando esta começa a apresentar alguma fala de interesse. Neste instante, a câmera treme, teima em se ajeitar, a formar o enquadramento até enfim captá-la. Há pouco preparo e técnica para abarcar o acaso, algo que seria indispensável para uma obra com tamanha abertura a interações não-condicionadas. Já a captação de som dentro de casa, nas conversas com a mãe, possui muitas deficiências, entre o eco e outros ruídos. Apenas na rua, com suas placas, em frente ao culto, o som se torna cristalino. A diferença de qualidade entre ambos os materiais transparece problemas de produção.
Ressalvas à parte, o projeto consegue oferecer uma singela introdução à personagem. A coragem de Mel se encontra igualmente no ato de se expor ao filme, abrindo as portas de casa, podendo receber uma nova resposta negativa dos juízes diante da câmera. A cabeleireira se oferece com um misto de sinceridade, humildade e predisposição ao martírio simbólico — movimentos compreensíveis para uma mulher tão religiosa. Ela possui falas articuladas e convicções bem estabelecidas nas conversas com as diretoras. Conhecemos pouco de seu mundo e das complexas relações sociopolíticas do Brasil pós 2016, porém entendemos a base de seu pensamento.