Trópico de Leão (2024)

Carta ao meu abusador

título original (ano)
Trópico de Leão (2024)
país
Brasil
linguagem
Ficção, Documentário
duração
100 minutos
direção
Luna Alkalay
elenco
Luna Alkalay, Lucia Castello Branco, Nuno Leal Maia, Chris Maksud, Fabia Renata, Helena Ignez
visto em
57º Festival de Brasília (2024)

“Este é um filme pós-traumático”. Assim a cineasta Luna Alkalay descreve o longa-metragem nos letreiros iniciais. Ela foi vítima de um relacionamento tóxico com um rapaz 35 anos mais novo, que a manipulou e abandonou. Em consequência, chegou a flertar com o suicídio. Passado algum tempo, ela encontra nas tragédias gregas a representação arquetípica de sua história. Eco, Penélope e Medéia convertem-se em alter-egos, parcelas de uma subjetividade que compreende tanto a singularidade de seu caso quanto o caráter universal das histórias de mulheres abandonadas.

Trópico de Leão constitui uma ficção, mas também um filme-ensaio onde o processo de criação nunca se distingue por completo da encenação. Do início ao fim, a narrativa alterna entre a leitura branca dos atores ao redor de uma mesa, e a interpretação posterior destes personagens em cenários-chave (o apartamento vazio após a separação, a beira do rio onde Caronte a espera). Deste modo, evita o sentimentalismo, além da imersão do espectador de modo mais amplo. A autora nunca pede que tenham piedade por ela, nem raiva pelo outro; e tampouco brada em cada imagem contra o machismo estrutural. 

Alkalay prefere que a multiplicidade recursos gere certo distanciamento: somos constantemente lembrados de que aquelas imagens constituem uma representação, que os textos poéticos foram escritos e ensaiados para tal efeito. Os corpos encarnam uma presença, aludem a figuras existentes, porém, jamais tentam se passar por elas. Este também é um filme a respeito da capacidade de expressar, por meio do audiovisual, um sentimento complexo e invisível por definição. No lugar da suspensão da descrença, recebemos um pedido constante pela manutenção da descrença — por favor, continuemos sempre duvidosos e suspeitosos do que nos passa pela frente, sejam os amores ou as imagens.

Uma obra de amor e de ódio (ambos sentimentos fundamentais para nos mover, tanto na política quanto na vida íntima). Alkalay costura a ficção e seu making of; a narrativa e seu avesso.

Em paralelo, a cineasta assume a vocação terapêutica da iniciativa. Cria uma obra “para o Narciso que existe em mim”, em suas palavras, mas também para elaborar a multiplicidade de sensações vivenciadas após o ápice do amor e o luto do relacionamento. Por isso, ela questiona sua idade, sua beleza, sua entrega a um indivíduo de menos experiência. Culpabiliza, em certa maneira, mas também dirige-se a ele enquanto narradora, para que o outro descubra, ao menos simbolicamente, tudo o que provocou na antiga parceira.

Ora, a cultura pop e as produções contemporâneas têm multiplicado as “obras de vingança”, nas quais cantoras, escritoras, dramaturgas, poetas e cineastas acertam contas com seus desafetos. As artistas são criticadas pela autoexposição, por trazerem à tona aquilo que se estima privado, apropriado apenas à vida entre quatro paredes. Além disso, o interlocutor não poderia responder aos ataques, então não seria esta uma maneira covarde de revidar? Ora, o cinema se transforma, nesta hora, em ferramenta suplementar a uma tomada de consciência feminista. Posto que os homens dominaram unilateralmente os relacionamentos, cabe agora a elas tomarem o poder e assumirem o discurso, em suas palavras, ditando a palavra final de suas narrativas. 

Estes projetos fascinam pela carga de ambiguidades e contradições inerentes ao gesto. Filmes a respeito de Narcisos, ou de antigos amores e desamores, soam simultaneamente humildes (posto que a autora revela sua fragilidade) e vaidosos (posto que discorre o tempo inteiro acerca de si própria). Sustentam a aparência de uma abordagem difícil (por lidarem com sentimentos profundos) e fácil demais (já que a própria vida, o corpo e a autoimagem estão disponíveis para se filmar quando quiser). Seria um processo generoso e autocentrado; altruísta e egoísta. 

Mas talvez o principal desconforto provenha do acerto de contas enquanto homenagem. Alkalay dedica um filme inteiro a este abusador. Expõe seus gestos violentos e tóxicos, é claro. No entanto, reforça a profunda importância que ele teve em sua vida: este sujeito motivou a diretora a retomar a carreira, escrever um roteiro, reunir diversos profissionais, contratar atores do porte de Helena Ignez e Nuno Leal Maia, apenas para representar a relação entre os dois. Talvez o desprezo e a indiferença constituíssem o afrontamento mais violento — o filme-contra-meu-odiado ainda significa um grande gesto de amor, um filme para ele, sobre ele, motivado por ele. Dificilmente a cineasta terá oferecido ao desafeto, quando ainda estavam juntos, um presente deste grau de importância.

Logo, ela desenvolve uma obra profundamente feminina e feminista, inteiramente dependente da imagem de um homem. Eis o nó da contradição: não existe uma única cena, ou performance das mulheres mitológicas, que não decorra da experiência com o interlocutor. Ele está profundamente presente em sua ausência, visível em sua invisibilidade. Utilizando termos contemporâneos, pode-se dizer que este drama reprovaria o teste Bechdel. O drama vislumbra um futuro de autonomia feminina, mas por ora, prefere elaborar as feridas não-cicatrizadas. Encontra-se num momento próximo demais ao trauma para se projetar na superação.

Felizmente, a artista possui plena consciência das texturas e imbricações destes fragmentos de um discurso amoroso. Sim, trata-se de uma obra de amor e de ódio (ambos sentimentos fundamentais para nos mover, tanto na política quanto na vida íntima). Ela costura a ficção e seu making of; a narrativa e seu avesso. Brinca de ressignificar frases marcantes do casal (batizadas de “Diálogos mortais”), e de encontrar equivalências ao sentimento pessoal e coletivo de morte — as analogias com a ditadura militar, os campos de concentração e a morte de um operário na construção ao lado de casa.

Alkalay investiga enquanto cria, ao invés de partir de uma definição polida e finalizada do conceito. Aparenta desenvolver a sua obra junto do espectador, envolvendo-nos nos pensamentos e ideias, ao invés de oferecer o resultado pronto. Sobretudo, fornece um belíssimo exemplo de produção criativa e arriscada de baixíssimo orçamento. É evidente que Trópico de Leão não dispõe de grandes recursos para a realização. Mesmo assim, multiplica as iniciativas, as poesias e metáforas. Oferece à montagem inúmeras possibilidades de agenciamento, e ao som, uma infinidade de caminhos possíveis. Assume a simplicidade dos ensaios enquanto conceito, ao invés de disfarçá-la. Enquanto cinema e enquanto confissão, a diretora trava um diálogo bastante franco com o espectador.

Trópico de Leão (2024)
8
Nota 8/10

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