“Este é um filme pós-traumático”. Assim a cineasta Luna Alkalay descreve o longa-metragem nos letreiros iniciais. Ela foi vítima de um relacionamento tóxico com um rapaz 35 anos mais novo, que a manipulou e abandonou. Em consequência, chegou a flertar com o suicídio. Passado algum tempo, ela encontra nas tragédias gregas a representação arquetípica de sua história. Eco, Penélope e Medéia convertem-se em alter-egos, parcelas de uma subjetividade que compreende tanto a singularidade de seu caso quanto o caráter universal das histórias de mulheres abandonadas.
Trópico de Leão constitui uma ficção, mas também um filme-ensaio onde o processo de criação nunca se distingue por completo da encenação. Do início ao fim, a narrativa alterna entre a leitura branca dos atores ao redor de uma mesa, e a interpretação posterior destes personagens em cenários-chave (o apartamento vazio após a separação, a beira do rio onde Caronte a espera). Deste modo, evita o sentimentalismo, além da imersão do espectador de modo mais amplo. A autora nunca pede que tenham piedade por ela, nem raiva pelo outro; e tampouco brada em cada imagem contra o machismo estrutural.
Alkalay prefere que a multiplicidade recursos gere certo distanciamento: somos constantemente lembrados de que aquelas imagens constituem uma representação, que os textos poéticos foram escritos e ensaiados para tal efeito. Os corpos encarnam uma presença, aludem a figuras existentes, porém, jamais tentam se passar por elas. Este também é um filme a respeito da capacidade de expressar, por meio do audiovisual, um sentimento complexo e invisível por definição. No lugar da suspensão da descrença, recebemos um pedido constante pela manutenção da descrença — por favor, continuemos sempre duvidosos e suspeitosos do que nos passa pela frente, sejam os amores ou as imagens.
Uma obra de amor e de ódio (ambos sentimentos fundamentais para nos mover, tanto na política quanto na vida íntima). Alkalay costura a ficção e seu making of; a narrativa e seu avesso.
Em paralelo, a cineasta assume a vocação terapêutica da iniciativa. Cria uma obra “para o Narciso que existe em mim”, em suas palavras, mas também para elaborar a multiplicidade de sensações vivenciadas após o ápice do amor e o luto do relacionamento. Por isso, ela questiona sua idade, sua beleza, sua entrega a um indivíduo de menos experiência. Culpabiliza, em certa maneira, mas também dirige-se a ele enquanto narradora, para que o outro descubra, ao menos simbolicamente, tudo o que provocou na antiga parceira.
Ora, a cultura pop e as produções contemporâneas têm multiplicado as “obras de vingança”, nas quais cantoras, escritoras, dramaturgas, poetas e cineastas acertam contas com seus desafetos. As artistas são criticadas pela autoexposição, por trazerem à tona aquilo que se estima privado, apropriado apenas à vida entre quatro paredes. Além disso, o interlocutor não poderia responder aos ataques, então não seria esta uma maneira covarde de revidar? Ora, o cinema se transforma, nesta hora, em ferramenta suplementar a uma tomada de consciência feminista. Posto que os homens dominaram unilateralmente os relacionamentos, cabe agora a elas tomarem o poder e assumirem o discurso, em suas palavras, ditando a palavra final de suas narrativas.
Estes projetos fascinam pela carga de ambiguidades e contradições inerentes ao gesto. Filmes a respeito de Narcisos, ou de antigos amores e desamores, soam simultaneamente humildes (posto que a autora revela sua fragilidade) e vaidosos (posto que discorre o tempo inteiro acerca de si própria). Sustentam a aparência de uma abordagem difícil (por lidarem com sentimentos profundos) e fácil demais (já que a própria vida, o corpo e a autoimagem estão disponíveis para se filmar quando quiser). Seria um processo generoso e autocentrado; altruísta e egoísta.
Mas talvez o principal desconforto provenha do acerto de contas enquanto homenagem. Alkalay dedica um filme inteiro a este abusador. Expõe seus gestos violentos e tóxicos, é claro. No entanto, reforça a profunda importância que ele teve em sua vida: este sujeito motivou a diretora a retomar a carreira, escrever um roteiro, reunir diversos profissionais, contratar atores do porte de Helena Ignez e Nuno Leal Maia, apenas para representar a relação entre os dois. Talvez o desprezo e a indiferença constituíssem o afrontamento mais violento — o filme-contra-meu-odiado ainda significa um grande gesto de amor, um filme para ele, sobre ele, motivado por ele. Dificilmente a cineasta terá oferecido ao desafeto, quando ainda estavam juntos, um presente deste grau de importância.
Logo, ela desenvolve uma obra profundamente feminina e feminista, inteiramente dependente da imagem de um homem. Eis o nó da contradição: não existe uma única cena, ou performance das mulheres mitológicas, que não decorra da experiência com o interlocutor. Ele está profundamente presente em sua ausência, visível em sua invisibilidade. Utilizando termos contemporâneos, pode-se dizer que este drama reprovaria o teste Bechdel. O drama vislumbra um futuro de autonomia feminina, mas por ora, prefere elaborar as feridas não-cicatrizadas. Encontra-se num momento próximo demais ao trauma para se projetar na superação.
Felizmente, a artista possui plena consciência das texturas e imbricações destes fragmentos de um discurso amoroso. Sim, trata-se de uma obra de amor e de ódio (ambos sentimentos fundamentais para nos mover, tanto na política quanto na vida íntima). Ela costura a ficção e seu making of; a narrativa e seu avesso. Brinca de ressignificar frases marcantes do casal (batizadas de “Diálogos mortais”), e de encontrar equivalências ao sentimento pessoal e coletivo de morte — as analogias com a ditadura militar, os campos de concentração e a morte de um operário na construção ao lado de casa.
Alkalay investiga enquanto cria, ao invés de partir de uma definição polida e finalizada do conceito. Aparenta desenvolver a sua obra junto do espectador, envolvendo-nos nos pensamentos e ideias, ao invés de oferecer o resultado pronto. Sobretudo, fornece um belíssimo exemplo de produção criativa e arriscada de baixíssimo orçamento. É evidente que Trópico de Leão não dispõe de grandes recursos para a realização. Mesmo assim, multiplica as iniciativas, as poesias e metáforas. Oferece à montagem inúmeras possibilidades de agenciamento, e ao som, uma infinidade de caminhos possíveis. Assume a simplicidade dos ensaios enquanto conceito, ao invés de disfarçá-la. Enquanto cinema e enquanto confissão, a diretora trava um diálogo bastante franco com o espectador.