Tudo que Imaginamos como Luz (2024)

Cidade; campo

título original (ano)
All We Imagine as Light (2024)
país
França, Índia, Holanda, Luxemburgo
gênero
Drama
duração
115 minutos
direção
Payal Kapadia
elenco
Kani Kusruti, Divya Prabha, Chhaya Kadam, Hridhu Haroon, Azees Nedumangad
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024

É muito interessante nos deparar com uma imagem da Índia bastante diferente daquela que habita o imaginário popular ocidental. Nada da pobreza multicolorida e espetacular de obras como Quem Quer ser um Milionário? e Fúria Primitiva, nem esta cordialidade servil de O Exótico Hotel Marigold. A diretora Payal Kapadia também escapa à promessa bollywoodiana de danças, cantos, amores impossíveis e galãs musculosos. Guardadas as proporções, esta seria como a oportunidade rara de apresentar, aos estrangeiros, um Brasil diferente do sertão e da favela.

Tudo que Imaginamos como Luz (All We Imagine as Light, no original) privilegia, por sua vez, a cidade frenética, noturna e plural de Bombaim. Concentra-se em duas enfermeiras, Prabha (Kani Kusruti) e Anu (Divya Prabha), amigas que dividem um apartamento e trabalham no mesmo hospital. Elas são relativamente progressistas, sem que estes posicionamentos constituam um conflito moral na história. Defendem o uso de pílulas contraceptivas, recusam casamentos arranjados pelos pais, ridicularizam a ereção de um paciente. Além disso, ocupam cargos de liderança, formando novas enfermeiras. A dupla passa seus dias nas idas e vindas no metrô, encontrando namorados pelas ruas, escutando música, comprando óculos e roupas.

Assim, some o exotismo dos filtros alaranjados, das cidades de terra abarrotadas de crianças, de curry, de comidas fritas e tuk-tuks, embalados numa representação da pobreza desesperada. O panorama se prova tão crônico quanto estável. Não é difícil enxergar uma dinâmica típica de cidadãos de classe média em qualquer metrópole, a exemplo das capitais brasileiras. No meio de um flerte, a heroína abandona o pretendente, pois precisa pegar o último trem para casa. As amigas trocam mensagens de celular entre turnos, incluindo brincadeiras e provocações. Logo, a representação das diferenças cede espaço a um convite para a identificação.

Nesta história, os homens são os verdadeiros tolos e ingênuos, que escrevem poemas e fazem juras de amor eterno, enquanto as mulheres, pragmáticas, escolhem o melhor futuro para si próprias.

O roteiro oferece duas histórias paralelas a respeito de amores deslocados da norma. Prabha é casada com um sujeito que se mudou para a Alemanha pouco tempo depois do matrimônio, e não telefona para a esposa há anos. Em consequência, ela se divide entre a saudade e a indignação, ou entre se sentir comprometida ou abandonada. Já Anu é pressionada para se casar com o rapaz de predileção da família, embora tenha se apaixonado por um jovem muçulmano, que jamais teria a aprovação dos pais.  

Nenhuma destas questões ocupa o drama de maneira melodramática. Pelo contrário, elas amam, mas depois discutem o aluguel, comentam a aquisição de uma panela de arroz, fofocam sobre uma enfermeira maldosa. O amor constitui apenas um dos elementos de uma rotina que não pode ser interrompida para contemplar a paixão. Kapadia expande o foco até desenhar uma cidade das mulheres, conferindo tempo excepcional às amigas (caso de Parvaty, que precisa voltar à aldeia natal) e as demais colegas de hospital. Estas mulheres são definidas pela relação umas com as outras, jamais pelos homens com quem se relacionam.

Curiosamente, passados dois terços da bela narrativa, as heroínas se deslocam a uma minúscula vila de pescadores. O espectador pode ficar em dúvida a respeito desta mudança brusca de cenário — afinal, encontramo-nos diante de um filme bastante diferente na reta final. No entanto, os propósitos se esclarecem a tempo: a autora reserva para este segmento a concretização metafórica dos dilemas. Ali, na fronteira entre o real e a imaginação, elas reencontram os rapazes por quem são apaixonadas, ou com quem se casaram, e podem tomar decisões capazes de libertá-las de amarras impostas por terceiros.

Sem qualquer mudança de ordem estética (nada de iluminação fabular, ou rupturas com o realismo mágico), elas permitem que a colaboração mútua lhe confira a autonomia necessária. O desfecho apela a uma revolução silenciosa das mulheres, avessa ao alarde e aos discursos pedagógicos. Talvez, por este motivo, tenha incomodado tanto as autoridades indianas, que o consideraram “um filme europeu situado na Índia”, preterindo-o na escolha do representante nacional no Oscar 2025. 

A maneira de observar mulheres e imaginar uma emancipação através da fantasia estabelece diálogo com inúmeras obras sul-americanas, caso do brasileiro Cidade; Campo, de Juliana Rojas. De qualquer maneira, Kapadia utiliza recursos próprios para estabelecer uma poesia simples e rigidamente calculada. Ela dissocia o som da imagem durante as conversas entre namorados; opta por uma trilha sonora lúdica em instantes cotidianos, aparentemente banais, e permite à montagem interromper as cenas sempre que alguma interação ameaça sublinhar emoções evidentes. O tempo e ritmo impressos pela edição se mostram exemplares.

Além disso, nesta história, os homens são os verdadeiros tolos e ingênuos, que escrevem poemas e fazem juras de amor eterno, enquanto as mulheres, pragmáticas, escolhem o melhor futuro para si próprias. “A noite é a minha parte preferida do dia”. Os diálogos são ternos, diretos, simples, oriundos de duas figuras tão inteligentes quanto sensíveis. Ali, na pedra jogada por Prabha e Parvaty num outdoor imobiliário (exibindo a frase “A classe é um privilégio reservado aos privilegiados”), Kapadia estabelece uma obra cuja política se encontra nas formas, nas luzes e na construção das personagens. Ela sonha, com os olhos abertos e os pés no chão, com novos ventos em seu país.

Tudo que Imaginamos como Luz (2024)
9
Nota 9/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.