Entre tantos recortes possíveis a partir da vida de Bob Dylan, esta biografia escolhe anos muito específicos na vida do cantor e compositor: em especial, o período entre 1961 e 1965, quando ele se firmou no cenário da música folk, e depois se tornou pária dentro deste mesmo grupo, ao experimentar com guitarras elétricas. O diretor James Mangold estima condensar, nesta fase, todas as contradições artísticas e amorosas de seu personagem, desde a busca reverencial pela fama até sua revolta pessoal contra o status cobiçado inicialmente.
Na composição de Timothée Chalamet, o protagonista adquire um olhar desafetado, misto de cansaço e indiferença. A fala pouco articulada, a postura corporal desleixada, as letras empregando termos simples e as melodias repetidas transmitem a impressão de alguém que não precisou se esforçar demais, pois a música lhe vinha de maneira espontânea. Por isso, o cantor desprezava o academicismo da companheira Joan Baez. Mesmo o roteiro prioriza amplamente a performance ao ato de compor. Na maioria das cenas, as novas músicas de Dylan nos aparecem prontas.
Logo, Um Completo Desconhecido evita o caminho comum de utilizar as canções enquanto componentes autobiográficos. Dispensa a compreensão comum de que “ele escreveu estas letras porque viveu tais situações”. Pelo contrário, jamais conhecemos ao certo a relação de Dylan com o cenário campestre, nem com a luta do povo, tantas vezes evocada em seu trabalho. Sua origem familiar, seus deslocamentos e o aperfeiçoamento na música são meramente aludidos, ou ignorados por completo. Precisamos simplesmente acreditar no filme quando insinua que tais pautas são importantes ao protagonista.
Um Certo Desconhecido demonstra respeito e interesse notáveis pelas músicas de Bob Dylan. Isso poderia soar como uma obviedade, mas não é.
De mesmo modo, clássicos como Blowing in the Wind e Mr. Tamborine Man jamais contribuem para fazer a narrativa avançar. Trata-se de músicas famosas, que trouxeram dinheiro e reconhecimento ao herói, ainda que não constituam suas composições favoritas. Nota-se uma curiosa opção por não definir o músico por sua música — a narrativa prefere evocar tais trabalhos como se fossem a nova cadeira ou estante construída por um marceneiro experiente. Ele era compositor, por isso, compunha. Era cantor, logo, cantava.
Mangold minimiza a paixão pela arte, a necessidade de produzir e canalizar sentimentos, os romances pessoais transformados em melodia. Aqui, a arte se resume a um ofício que Dylan desempenha porque possui a consciência de ser bom em fazê-lo. Entretanto, parece surpreendentemente distanciado da própria criação. Por isso, surpreende o anúncio do herói em investir nas guitarras elétricas, assim como os rompantes de vaidade sobre o palco, rejeitando pedidos do público para tocar os clássicos. Afinal, ele nunca havia parecido tão egocêntrico em seu processo de criação e performance.
O retrato de uma relação despojada com a música, somado aos trejeitos blasés do intérprete principal (conferindo a Dylan uma aparência adolescente), torna o herói misterioso. É difícil entender o motivo pelo qual toma algumas atitudes (as idas e vindas com Sylvie e com Joan Baez, a incorporação quase aleatória de alguns músicos à banda). O diretor estima que esta indefinição seria característica inerente ao jovem, que tampouco soava claro às namoradas e amigos. Em consequência, ao invés de desvendá-lo ou explicá-lo, o longa-metragem prefere manter uma subjetividade nebulosa, à qual nunca temos acesso por completo. Justifica, deste modo, o título.
Embora esta ambiguidade seja rara e bem-vinda no gênero desgastado da cinebiografia, ela prejudica a compreensão de algumas guinadas abruptas. A narrativa dedica metade de sua duração aos anos de formação (1961-1964), e a segunda metade ao ano em que tudo mudou (1965). Esta última parte sofre com múltiplos saltos temporais, quando as relações de causa e consequência se perdem. Aproxima-se então do perigoso “filme Wikipédia”, que se limita a listar momentos importantes, um após o outro, sem compreender o que os teria levado ali.
Isso significa que Dylan passa do desconhecimento público ao assédio brutal nas ruas, em pouquíssimo tempo. Após duas cenas exemplares de fama, ele se torna novamente anônimo assim que veste os óculos escuros. Como isso ocorre? O que acontece, em sua compreensão da carreira, para efetuar uma virada tão brusca no estilo musical? Para agir de maneira irresponsável nos palcos? Para modificar o corte de cabelo, as roupas, a persona pública? Estas transformações nos chegam sem a devida compreensão de origem e processos. Ressente-se um mergulho nas motivações e subjetividades de uma figura tão volátil.
Em contrapartida, Um Certo Desconhecido demonstra respeito e interesse notáveis nas músicas do cantor. Isso poderia soar como uma obviedade, mas não é — diversas biografias listam as canções sem contemplá-las de fato, privando o espectador da possibilidade de escutá-las. Aqui, em contrapartida, Mangold dedica cenas longas, com canções interpretadas na íntegra por Chalamet, em sua própria voz. A decupagem é discreta, pouco intervencionista, para nos permitir desfrutar do momento musical.
É verdade que tais momentos pertencem sobretudo à primeira metade, dedicada à formação do personagem. Uma vez consolidado o seu reconhecimento musical, cada apresentação se torna fortemente conotada: trata-se do festival específico em que se aproximou de Joan Baez, do momento em que gerou forte rejeição do público em Newport, e assim por diante. A música adquire uma função narrativa específica; uma obrigatoriedade neste resumo da carreira de Dylan. Antes, quando se caracterizavam pelo prazer da arte em si, soavam mais genuínas, pois desinteressadas.
Ao final, resta uma obra desigual em estratégias e estilos. O filme deseja combinar muitos recursos num único processo, substituindo a flanêrie agradável do início pela sucessão protocolar de reviravoltas a seguir. Restam, ao final, a lembrança das belas canções, entoadas com calma e atenção; e o carinho por colegas de percurso (Pete Seeger, belamente interpretado por Edward Norton) e ídolos da música (Woody Guthrie, vivido por Scoot McNairy). As relações com as mulheres nunca se tornam tão potentes e completas quanto aquelas entre colegas do sexo masculino. Justifiquemos, assim, pelo menos parte destas lacunas à aura de mistério que o filme insiste em atribuir ao biografado.