O terço inicial deste documentário se concentra na luta de lideranças Guarani Kaiowá contra os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro. As diretoras Laura Faerman e Marina Weis relembram ao espectador o perigo das terras não-demarcadas e apropriadas por fazendeiros, a destruição da natureza pelos homens brancos, a contaminação dos rios por mercúrio, a disposição dos ex-presidentes em ceder à pressão do agronegócio. Enquanto isso, revelam a articulação das comunidades originárias e a formação de novas gerações para seguirem os passos dos veteranos dentro desta luta.
Até aí, o projeto se assemelha a diversos filmes brasileiros voltados à denúncia de crimes e à conscientização a respeito de causas sociais urgentes. Parte considerável destas obras políticas se contenta em informar o espectador, “a quem interessar possa”, de maneira ampla, clara e didática. Acredita que o tema seja importante em si próprio, e “mereça” um filme para registrar realidades pouco veiculadas pela mídia hegemônica. Trata-se de um cinema assumidamente utilitarista, visando integrar a disputa de narrativas contemporânea.
O documentário oferece igual importância aos opressores e aos oprimidos. Era relevante oferecer mais um palanque aos pensamentos racistas do patronato?
Entretanto, Vento na Fronteira se distingue do grupo por um aspecto fundamental: a decisão de acompanhar uma família bolsonarista e escutar os seus pontos de vista, em paralelo às falas de indígenas. A advogada e herdeira de terras Luana Queiroz é vista em casa, conversando com o pai fazendeiro, defendendo as restrições às terras indígenas em Brasília, revelando seus pesadelos com a invasão de indígenas “a cavalo, sem camisa, com muitas penas”.
É evidente que as autoras não abraçam o discurso desta mulher, nem de seus familiares, embora os testemunhem com sobriedade e atenção. Após falas mais ferozes da personagem (quando afirma a importância de substituir bandeiras vermelhas por bandeiras verde-amarelas), surgem imagens de arames farpados e câmeras de segurança, provocando estranhamento e evitando o pathos da fala alheia. Nunca se confunde tais encontros com uma adesão à ideologia dos empresários.
O projeto escolhe uma estrutura metonímica para representar o embate entre fazendeiros e indígenas. Elege uma protagonista, a líder guarani Alenir Aquino Ximendes, e uma antagonista, Luana Queiroz. Através da disputa judicial em andamento, envolvendo o domínio das terras na fronteira com o Paraguai, o longa-metragem pretende ilustrar uma infinidade de brigas jurídicas semelhantes, envolvendo o direito à propriedade e os direitos fundamentais dos povos que ocupavam aquelas terras muito antes das famílias brancas.
Em contrapartida, a disposição plácida a escutar os dois lados da história levanta alguns questionamentos éticos fundamentais. Compreende-se a vontade de estabelecer um diálogo com as partes adversas, sobretudo nestes tempos de polarização política e dificuldade de ouvir opiniões diferentes das nossas. Pode-se valorizar, igualmente, a eliminação de um maniqueísmo simples: a família de fazendeiros jamais se converte em vilões perversos. As autoras desejam estabelecer um debate de ideias, ao invés de mergulharem na dicotomia comum do nós contra eles.
Mesmo assim, surpreende o espaço que a defesa dos pecuaristas ocupa no documentário. A montagem coloca ambas as falas em paralelo, equilibrando a vida cotidiana de Alenir com a resposta jurídica de Luana. Deste modo, sugere que ambas as vozes possuem igual importância, merecendo ser apreciadas com a mesma atenção. Indica que a luta indígena envolve o ponto de vista de um contra o ponto de vista do outro, e que seria prudente colocar ambas as vozes em pé de igualdade. Ora, é necessário, em nome da polidez e da democracia, demonstrar respeito por aqueles que defendem a barbárie?
Por trás desta abertura inicial às diferenças, nutre-se uma tendência ao distanciamento, mirando uma utópica imparcialidade. Ora, este preceito típico do jornalismo isento e pouco posicionado politicamente surpreende em uma obra artística, orquestrada a partir de um funcionamento distinto. O pensamento majoritário já ocupa os editais dos grandes jornais, as notícias dos portais na Internet, e mesmo as notícias falsas disseminadas pela extrema-direita. Era relevante oferecer mais um palanque aos pensamentos racistas do patronato?
Talvez seja importante conhecer em quais termos eles se expressam, de que forma refletem sobre a “invasão” indígena em “suas” terras. Nos diálogos, os Guarani Kaiowá são comparados a morcegos, a crianças mimadas, a gado pouco inteligente. Um ex-prefeito, e membro da família principal, descreve esta comunidade enquanto “subespécie humana que ficou para trás no caminho da humanidade”. Os célebres vídeos de Bolsonaro afirmando que não demarcaria nenhuma terra indígena são resgatados, ainda que no celular dos indígenas — ou seja, pela perspectiva deles.
Na sala de cinema do Bonito Cine Sur, o público vaiava as falas fascistas, demonstrando compreensível indignação ao enunciado desumanizante em relação aos povos originários. Criou-se, neste sentido, a união em torno da desaprovação de tais falas. Em contrapartida, a obra adota recursos insuficientes para se distanciar, narrativa e esteticamente, da perspectiva de Luana e seus familiares. O documentário escuta mais do que se posiciona, em especial pela timidez da montagem. Adota uma perspectiva passiva frente ao desejo manifesto de balearem os Guarani Kaiowá “até acabarem as balas”.
Aí reside o incômodo em Vento na Fronteira, uma produção belamente fotografada, muito bem produzida e munida de ótimas intenções. Ela adota o equilíbrio de representatividades a partir de um desequilíbrio grave de capital (concreto ou simbólico) de ambas as partes na sociedade brasileira. A narrativa começa e termina junto aos indígenas, felizmente. No entanto, oferece igual importância a Davi e a Golias, aos opressores e aos oprimidos. Confunde igualdade e equidade. A luta interminável destes povos não pode se resumir à estrutura de “a perspectiva de um contra a perspectiva do outro — escolha a sua”.