Uma coprodução entre Brasil, Taiwan, Argentina e Alemanha. O encontro entre culturas é a base de Dormir de Olhos Abertos, filme a respeito da condição de estrangeiros vivendo no Recife. A diretora alemã Nele Wohlatz já tinha abordado as barreiras linguísticas no belíssimo O Futuro Perfeito, em 2016.
Agora, ela expande o olhar para três estrangeiros vivendo no Brasil e tentando compreender um funcionamento social muito diferente do seu. Na trama, Kai (Liao Kai Ro), Fu Ang (Wang Shin-Hong) e Xiao Xin (Chen Xiao Xin) se encontram no Brasil por motivos diferentes — seja a trabalho, ou após uma desilusão amorosa. Permanecem no local onde existe uma violência invisível e absurda direcionada àqueles que vem de fora. Enquanto isso, encontram dificuldade de dormir por causa do barulho, dos colegas de quarto, das angústias amorosas.
O filme, exibido na Mostra Encounters do 74º Festival de Cinema de Berlim, foi coroado com o prêmio da imprensa (FIPRESCI), e traz Kleber Mendonça Filho e Émilie Lesclaux, do Cinemascópio, como produtores pelo Brasil. Confira a entrevista realizada com Wohlatz durante a Berlinale:
Em O Futuro Perfeito, você já lidava com língua e linguagem enquanto motor narrativo. O que te interessa neste tema?
Acredito que Dormir de Olhos Abertos seja menos explícito na questão da língua. Ele ainda toca nestes aspectos, pelo fato que os personagens se comunicam em muitas línguas diferentes. Mas os dois filmes decorrem da minha experiência, quando vivi em Buenos Aires, enquanto pessoa alemã. Comecei a fazer filmes lá, e queria entender como lidar com a minha perspectiva estrangeira. É um grande desafio ser uma diretora em um país onde não falam a sua língua materna. O Futuro Perfeito trata claramente dos desafios de viver em outra língua, de maneira metalinguística, o tempo inteiro. Neste novo filme, ainda abordamos a condição estrangeira, mas sentia que não precisava mais de uma relação tão metalinguística com as línguas, e podia apenas desenvolver este tema nos personagens.
São escolhas inusitadas. Você solicita ao ator franco-argentino Nahuel Pérez Biscayart que fale em mandarim, e às atrizes chinesas, que falem em espanhol.
Queria captar um sentimento bastante abstrato a princípio. Já tinha feito O Futuro Perfeito, que é divertido e otimista, porque mostra como uma pessoa pode se reinventar a partir da nova língua. Mas depois de alguns anos, percebi que eu nunca seria parte integrante desta nova sociedade — eu sempre seria estrangeira. Comecei a perder a conexão com a Alemanha, país onde nasci. Então surgiu a vontade de fazer um filme sobre pessoas que se mudam sempre, mas nunca chegam a lugar nenhum. Este foi o ponto de partida. Também escolhi uma estrutura coral, com diversos personagens que lidam com estes sentimentos a partir de motivações distintas. Perder o sentimento de pertencimento é algo que pode acontecer a todos nós, em qualquer momento da vida, mesmo quando ainda moramos no lugar onde nascemos.
Esta estrutura é bastante livre. Demoramos um tempo até compreendermos quem são os personagens principais, ou se os personagens retornarão depois de apresentados.
A montagem foi uma questão importante! Queria que os editores Yann-shan Tsai e Ana Godoy estivessem sentados aqui comigo, porque eles fizeram um trabalho excelente. Por causa do filme anterior, eu já sabia que se quisesse trabalhar com atores e atrizes chineses não-profissionais, que pertencem de fato à comunidade de trabalhadores imigrantes, eu teria alguns desafios. Eu provavelmente começaria a filmar com eles, mas na semana seguinte, eles não estariam mais presentes, porque o trabalho exigiria que se mudassem para outra cidade ou país. Quando escrevemos o filme, geralmente usamos estruturas clássicas, baseadas em regras e princípios de espectatorialidade que não correspondem à realidade. A experiência destas pessoas é totalmente diferente. Por isso, precisamos adaptar as histórias para abarcar as vidas que decidimos representar.
As conexões entre os protagonistas ocorrem por associação mais temática do que narrativa.
Eu pensei que as duas personagens femininas precisavam formar uma dupla, em modo Yin-Yang. Kai, a turista, espelha a minha perspectiva de visitante no Brasil — sou uma diretora com vivência bem diferente daquela de um trabalhador chinês. E então existe Xiao Xin, que escreve as crônicas, expressando os sentimentos abstratos dela e dos colegas de trabalho. Ela se torna uma representante do real, o que de certo modo também expressa minha posição enquanto cineasta. Mas ela também precisa de Kai enquanto leitora. Eu estava interessada em saber como filmar o pertencimento, e as ligações entre pessoas a partir de histórias distintas. Por isso imaginei essas duas personagens femininas que se completam sem jamais se encontrarem.
Você já tinha um roteiro bem estabelecido, que trabalhou com seus atores, ou o texto surgiu das experiências de vida dos protagonistas?
Este filme é menos híbrido do que O Futuro Perfeito, que foi escrito, ensaiado, desenvolvido e filmado ao mesmo tempo, de maneira bastante orgânica. Naquele caso, a gente seguia a vida da Zhang Xiaobing, e abordava as experiências dela. Desenvolvi um roteiro baseado naquela jornada pessoal, enquanto eu a preparava para ser atriz. Filmamos ao poucos, apenas nos fins de semana, porque o orçamento era ínfimo.
Aqui, tivemos bastante tempo de pesquisa na comunidade chinesa, e a Xiaobing inclusive foi uma das pesquisadoras. Visitamos os comércios de rua do Recife, e perguntamos sobre a rotina destes trabalhadores chineses. Eles nos falaram de suas questões de pertencimento. Dividiram histórias, anedotas, lembranças. Devido à minha formação como documentarista, eu sempre tenho pessoas reais em mente, que eu gostaria que representassem a si mesmos.
Isso começou em 2017, com Émilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho como produtores. No final de 2018, nós já tínhamos o financiamento de base, através da Ancine. Mas em 2019, Bolsonaro chegou e congelou todo o financiamento para filmes. No ano seguinte, veio a pandemia. Então lutamos muito, esperamos e torcemos para o projeto acontecer. Somente em 2022 conseguimos filmar de fato.
Quando voltei para Recife para concretizar o projeto, descobri que vários trabalhadores chineses para quem eu tinha escrito o roteiro já tinham voltado para a China. Começamos um enorme processo de seleção de elenco, dividido em duas partes. Uma delas era comandada por Karina Nobre, de Recife, e que trabalha bastante como pesquisadora e co-diretora em documentários. Ela se encarregou do processo com atores não-profissionais. Já Gabriel Domingues, baseado em São Paulo, cuidou dos atores profissionais. E eu lidei com os personagens principais. Em Buenos Aires, conheci Xiao Xin. Na escola de cinema onde dei aulas, encontrei Kai. Conheci Shin-Hong em Taiwan. Estas pessoas vêm do contexto retratado, mas não estão interpretando a si mesmas. É uma ficção mais clássica, embora com atores não-profissionais.
Dormir de Olhos Abertos tem bastante humor, decorrente de situações absurdas: uma melancia arremessada do alto de um prédio, dinheiro jogado pelos ares… Qual era a função destes segmentos para você?
Gosto de trabalhar com as situações que a vida oferece. Converso muito com as pessoas, e quando me contam alguma história interessante, faço uma anotação mental. Muitos acontecimentos do filme são baseados em episódios reais contados pelos imigrantes. Mas a questão para mim era: como eu, uma mulher europeia, branca, poderia ir ao Recife e trabalhar com os brasileiros? Eu também tinha o desafio de trabalhar com os personagens chineses, embora as filmagens de O Futuro Perfeito tivessem me treinado para este novo longa-metragem.
Eu escutei muitas histórias violentas, porque refletem as lembranças das pessoas que aparecem no filme. Mas eu não imaginava como poderia filmar estas cenas, de maneira explícita, sem cair em estereótipos raciais. Preferi criar um sentido mais abstrato de ameaça ao redor deles, por meio destes momentos absurdos. O filme é narrado pela perspectiva do estrangeiro, e quando você chega a outros países, você entende algumas coisas, mas fica perdido em muitas outras. Você presencia fatos que não consegue interpretar, porque não conhece os laços de causa e consequência.
A metáfora de nunca conseguir dormir direito me pareceu bastante interessante para representar o sentimento de ser estrangeiro.
Quando eu comecei a escrever, também sofria de insônia. Depois, consegui dormir melhor, mas tinha muita dificuldade para dormir. Esse é um grande problema, que pode se tornar algo grave para um número cada vez maior de pessoas. A falta de sono também provoca esta sensação de não pertencer aos lugares, então achei que o sono se tornava algo precioso, e também uma metáfora para a dificuldade dos personagens.
Como vê a importância de exibir o longa-metragem na Mostra Encounters do Festival de Berlim?
Esta experiência ainda é muito nova para mim. Só tinha vindo uma única vez à Berlinale, em 2016, como parte do programa Berlinale Talents. A seção Encounters é nova para mim, mas já tinha lido sobre este programa nos anos anteriores. Era exatamente a mostra onde eu torcia para Dormir de Olhos Abertos ser selecionado! Eu também pude assistir a outros filmes da Encounters aqui, e fico feliz de saber que nosso projeto está cercado por outros filmes excelentes.