Juan Manuel Tellategui nasceu e cresceu na Argentina, mas atua no Brasil desde 2011. Com 25 anos de carreira, o ator e dramaturgo tem explorado os papéis mais diversos no teatro, na televisão e no cinema: ele participou da série Toda Forma de Amor (2018), dirigida por Bruno Barreto, além de Chuteira Preta (2019), do Prime Box Brazil, e Manual para se Defender de Aliens, Ninjas e Zumbis (2017), da Warner.
Nos cinemas, integrou o elenco da comédia Divã a Dois (2015), de Paulo Fontenelle, e dos premiados 30 Anos Blues (2018), de Andradina Azevedo e Dida Andrade, e de Baile de Formatura (2016), de Lufe Steffen. Agora, ele possui um papel de destaque em Águas Selvagens (2019), coprodução brasileira-argentina que chega aos cinemas no dia 12 de maio.
Na trama, adaptada de Óscar Tabernise e dirigida por Roly Santos, Tellategui interpreta Fabián, o recepcionista do hotel onde se hospedam o investigador Lúcio Gualtieri (Roberto Birindelli) e a visitante Rita (Mayana Neiva), mulher com um passado sombrio a esconder. Neste local remoto da Tríplice Fronteira, ele testemunha diversos atos criminosos, envolvendo tráfico de pessoas e venda de bebês. Enquanto isso, apaixona-se por uma mulher proibida e se envolve nos esquemas alheios.
O Meio Amargo conversou com o ator, em exclusividade, a respeito desse projeto e de sua trajetória artística:
Em Águas Selvagens você interpreta Fabián, que funciona como os olhos e ouvidos da trama. Como construiu o personagem?
O Fabián trabalha em um dos hotéis onde ocorre grande parte da trama. Ele é um personagem muito interessante, porque estabelece a ligação entre os personagens. A composição dele ocorreu a partir de observações desta figura tão particular: ele é um jovem que funciona como anti-herói. A partir das boas intenções dele, comete erros trágicos. Não digo mais para não entregar nenhum spoiler!
Fabián é movido por amores e desejos, mas fica silencioso em diversas cenas. Como Roly Santos te dirigiu neste aspecto?
O Roly Santos é um diretor fantástico. Ele trabalha de maneira muito presente com os atores no set. Ele deixou espaço criativo para a gente experimentar muito, a partir do entendimento que cada ator tinha dos personagens. Foi um trabalho gostoso, de bastante liberdade criativa. O elenco podia propor novas intenções ao diretor, e isso me deixou muito feliz. Esta experiência de troca, com um diretor muito aberto, é ótima.
O cinema brasileiro raramente aborda a geografia da Tríplice Fronteira. Qual é a importância de retratar este local em imagens?
De alguma maneira, isso desmistifica ideias preconcebidas sobre a relação entre países limítrofes como a Argentina e o Brasil. Isso nos aproxima nas nossas diferenças, que não são tantas quanto se pensa. Apesar de ser uma história policial e fictícia, de gênero noir, concebida pelo Tabernise, o fato de ser uma coprodução Argentina-Brasil fornece uma experiência excepcional. No set de filmagens, trabalhamos com atores brasileiros, argentinos e uruguaios — caso do Roberto Birindelli. Agora ele já é brasileiro, na verdade! É muito interessante para a Argentina e o Brasil apostarem em coproduções, que reúnem o melhor de cada país. A partir do olhar do diretor, com o universo proposto pelo roteiro e pela dramaturgia, o espectador desvenda um verdadeiro mistério para quem não conhece esta região particular.
Esta é uma história de agressões, envolvendo inclusive o personagem de Fabián. Como enxerga a violência na trama?
Por pertencer ao gênero noir, o filme desvenda uma série de segredos, e à medida que a trama avança, vamos aprofundando nos microuniversos propostos por esse emaranhado de personagens. O filme retrata a condição humana. É um ponto onde se perde a noção dos limites possíveis e aceitáveis dentro de um contexto social. Essa violência é a mesma que temos no dia a dia. Apesar de ser uma trama ficcional, as coisas que acontecem aqui poderiam facilmente ser inspiradas de notícias que compõem o noticiário todos os dias. Além de ser parte da condição humana, essa violência do filme traz uma reflexão. Os personagens não têm redenção: eles cometem erros trágicos com uma violência desmedida, devido a paixões arrebatadoras. Para o público, isso pode oferecer uma espécie de catarse.
Fabián é um personagem moralmente ambíguo como outros que você já interpretou — penso em Chuteira Preta, por exemplo. Esses personagens são mais interessantes para um ator?
Sem dúvida. Isso sai do maniqueísmo, sai do bem contra o mal, do mocinho contra o vilão. Dentro da gente, esta polaridade está diluída: ninguém é absolutamente bom, nem mau. É uma delícia quando temos a possibilidade de compor um personagem ambíguo. As motivações do personagem partem de lugares e contextos mais complexos. Ninguém nasce bom ou ruim: o contexto em que nascemos vai ditar as nossas atitudes. A gente é humano, então erra, e tenta de novo. Trabalhar a partir desta perspectiva é algo excepcional.
Em 25 anos de carreira, você tem tanta experiência na Argentina quanto no Brasil. Você se sente igualmente confortável atuando em português e castelhano?
Sim. Foi um processo muito longo. O idioma configura a poética expressiva do ator. Este percurso que venho fazendo no Brasil, trabalhando em português, só me acrescentou possibilidades expressivas. Além disso, saio do lugar de conforto, porque o português me oferece novos desafios criativos. Quando falamos na nossa língua materna, existe uma segurança maior. Fazer uma composição em outra língua implica num desafio. Temos muitos casos de artistas brasileiros que trabalharam em outros países, e vemos como o desafio é encarado por cada um. Descobrimos outra cultura através da língua. Além disso, o sotaque só acrescenta. No contexto de uma narrativa que justifique essa poética, o sotaque tem muito a acrescentar: ele apresenta novos corpos, novas sonoridades e falas.
Você tem alternado entre teatro, televisão e cinema. Encara todas as formas de atuação da mesma maneira?
É preciso muito estudo para alternar entre tudo isso. O teatro tem a demanda da repetição para fazer uma temporada inteira, e se manter sempre de prontidão para encontrar a plateia e manter o frescor a cada novo encontro. O cinema e a televisão têm outro ritmo de trabalho, e outra forma expressiva para o ator. Nestes casos, a câmera consegue capturar o âmago do ser. O diálogo é bem diferente.
O fato de também ser diretor deve afetar a maneira como compõe personagens.
Sem dúvida. Quando você transita pela experiência de ter o olhar externo sobre o todo, acaba criando camadas de leitura que, na hora de encarar um personagem, influenciam o trabalho criativo. É sensacional quando você tem a troca com diretores que também permitem o lado criativo do ator.
O que seria um diretor ideal? Aquele que dá muitas indicações, ou que deixa bastante livre?
Tenho trabalhado com diretores, no teatro, no cinema e na televisão, de linhas bem diferentes. Não existe o ideal. Quando a gente acha que existe uma fórmula certa, isso cristaliza o trabalho. Cada obra apresenta seu próprio desafio — as técnicas se reconfiguram durante o processo. O importante é compreender a proposta de cada filme. Esse conjunto de pessoas em frente e atrás das câmeras está unido para contar a mesma história. Quando esse entendimento acontece no set e nos ensaios, no caso do teatro, a maquinaria funciona.
Tem apego à sua própria imagem? Gosta de se ver nos filmes prontos; corre para rever a tomada em que aparece, durante as filmagens, no video assist?
Depende muito da situação e do projeto. Às vezes gosto de me assistir, às vezes, não. Mas a gente precisa se olhar. Quem tem esse olhar geral é o diretor, mas o ator precisa saber qual é a sua poética expressiva para saber o que ele está imprimindo. Ele precisa ver de que outras formas poderia encarar o trabalho. É muito importante saber observar a si mesmo.
Alguns anos atrás, você disse que tinha interesse em atuar em telenovelas. O que elas representam para você?
A novela é um gênero fantástico, porque tem um apelo a outro público, talvez diferente daquele que frequenta o teatro e o cinema. Este universo sempre foi atraente para mim: cresci vendo novela, e aqui no Brasil, existe uma forma admirável de produção de novelas, em termos de dramaturgia e também de produção. Adoraria fazer novelas e transitar por esta linguagem também.
A propósito de linguagem, você tem um percurso particular como ator, por ser formado igualmente em música e filosofia. Imagino que isso influencie o seu percurso nas artes dramáticas.
O teatro e o trabalho de atuação em geral são sempre nutridos por outras áreas de conhecimento. O ator nunca se esgota em si próprio: é preciso estudar o tempo inteiro, procurar novas experiências e abrir o espectro do que seria a atuação. É preciso estar aberto a outras formas artísticas e expressivas em geral. O diálogo entre as linguagens acontece o tempo inteiro. Poder aprofundar a filosofia nas artes visuais implica numa maneira fantástica de me expressar por outras maneiras.
Águas Selvagens chega às salas de cinema. Neste período de crise para o cinema brasileiro, há uma discussão intensa sobre o lançamento em salas ou no streaming. Para você, enquanto ator, existe diferença em exibir seus trabalhos nestes dois espaços?
Eu não sou maniqueísta. As duas propostas geram experiências estéticas diferentes. Mas temos que pensar que, quando um projeto cinematográfico nasce, a primeira perspectiva é aquela de concretizar a produção numa tela de cinema. Este projeto foi idealizado inicialmente neste formato. Mesmo assim, não descarto a possibilidade de compartilhar essa obra por outras vias, com outros públicos também. São experiências diferentes. Eu amo ir ao cinema, porém também gosto de ver coisas em streaming. Sei que, quando vou ao cinema, a minha disposição para dialogar com a obra é outra. Em casa, podemos pausar, ir ao banheiro, comer alguma coisa. Acredito que as duas experiências sejam válidas, contanto que cheguem ao público e proponha uma narrativa.
A este propósito, o que costuma ver enquanto cinéfilo? Gosta de filmes noir como Águas Selvagens?
O que me motiva são as histórias. Mais do que o gênero, o que realmente me cativa é uma história bem contada, e a humanidade contada ou impressa naquela obra. Gosto da capacidade de poder me olhar. Tanto o cinema quanto o teatro constituem artes onde o ser humano consegue enxergar a si próprio, em sua humanidade.
Nesta fase de retomada às salas de cinema, o cinema de gênero teria maior apelo para trazer o público de volta ao circuito?
Esta é uma alternativa possível. A intenção de levar o público ao cinema tem a ver com formar espectadores para esta linguagem. O cinema tem uma linguagem específica que precisa ser decodificada, para além dos blockbusters aos quais as pessoas estão acostumadas. Existem muitas formas para além do cinema de alto impacto, repleto de artifícios. Criar espaços possíveis para o debate e a discussão geraria mais proximidade do espectador com outros gêneros.
Você trabalhou com alguns dos jovens diretores mais radicais (Dellani Lima, Dida Andrade, Andradina Azevedo) e com expoentes do cinema LGBT (Lufe Steffen, Bruno Barreto). O que guia as suas escolhas de projetos?
Essa é uma pergunta difícil. Eu sigo aquilo que me motiva — seja a proposta, seja a narrativa contada. Os diretores que você mencionou me trouxeram experiências incríveis, cada um com sua estética e proposta narrativa. Alguns foram mais radicais mesmo. Poder experimentar o olhar de cada diretor representa um grande aprendizado. Para além de contar a história coletivamente, o aprendizado dessa variedade de experiências foi muito enriquecedor.
A escolha também é determinada pelos atores com quem vai trabalhar? Você se guia pela perspectiva de atuar num personagem diferente do que já fez antes?
Às vezes, isso pesa sim. Não penso especificamente nos colegas de elenco, mas nos desafios que cada filme representa. É claro que foi um prazer imenso trabalhar com Roberto Birindelli e Mayana Neiva, por exemplo, em Águas Selvagens. Eles foram excelentes parceiros de cena e colegas de trabalho.
Os brasileiros costumam ter uma impressão muito clara do que seria o cinema brasileiro e o cinema argentino — geralmente, enxergando os argentinos como superiores. Como interpreta esta percepção?
O cinema é uma linguagem muito complexa. Para fazer um filme, os realizadores trabalham demais, às vezes durante vários anos até conseguirem a equipe, os atores, a locação. É algo demoradíssimo. Este é o sonho de um realizador, e muitos espectadores não têm a dimensão de todo o trabalho envolvido na criação de um filme — especialmente na América Latina. Temos uma indústria que trabalha muito, de maneira independente. Qualquer tentativa de produção é válida. Por isso, sou um defensor fervoroso das produções nacionais da Argentina e do Brasil. Cada país tem suas próprias formas narrativas. No cinema brasileiro, temos expoentes geniais. Às vezes, apenas vemos a grama do vizinho como mais verde do que a nossa.
Quais serão os seus próximos projetos, enquanto ator e diretor?
Estou com dois projetos em teatro, ainda para esse ano. Um deles é um texto brasileiro, de um dramaturgo fantástico. Mas não posso adiantar os detalhes por enquanto! Fazer um texto brasileiro, captando o universo autóctone, e interpretar um personagem enquanto ator imigrante, é um grande desafio, mas também um imenso prazer. O outro projeto foi criado durante a pandemia, inicialmente para ser realizado em formato online. Agora estamos remodelando para levá-lo ao presencial. Vai ser outra proposta: esta é uma comédia leve, falando sobre amor.
Águas Selvagens chega a vários cinemas, mas onde podemos encontrar os seus outros trabalhos?
Alguns trabalhos estão nas plataformas digitais. Chuteira Preta está no Prime Box Brazil, e o seriado Toda Forma de Amor está no Canal Brasil. Para quem quiser me seguir, estou igualmente nas redes sociais (@juantellategui). Ali coloco todas as novidades para quem quiser acompanhar os meus trabalhos.