Os espectadores apaixonados pelo cinema queer provavelmente já conhecem o trabalho do mexicano Julián Hernández. Desde seus primeiros longas-metragens, como Mil Nubes de Paz Cercan el Cielo, Amor, Jamás Acabarás de Ser Amor (2003) e El Cielo Dividido (2006), até os mais recentes e premiados, como Eu Sou a Felicidade Deste Mundo (2014) e La Huella de Unos Labios (2023), sempre retratou os afetos entre pessoas do mesmo sexo, reivindicando a importância dos romances e dramas centrados em personagens queer.
Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ele apresenta seu novo trabalho, Os Demônios do Amanhecer (2024). A trama acompanha a paixão entre o bailarino Orlando (Luis Vegas) e o enfermeiro Marco (Axel Shuarma). Os dois jovens se mudam para o mesmo apartamento, mas logo descobrem diferenças que começam a afastá-los: em particular, Orlando não está acostumado aos relacionamentos monogâmicos, enquanto Marco, afastado de sua família, enxerga no namorado uma fonte segura de afeto. O roteiro acompanha as desventuras amorosas do casal.
O Meio Amargo conversou com Julián Hernández e seu produtor, Roberto Fiesco, com quem trabalha desde 2006:
Este não é seu primeiro filme sobre os amores da juventude. Por que gosta de se concentrar neste período da vida?
Julián Hernández: Bom, eu comecei a fazer filmes sobre jovens quando eu também era jovem. Meu primeiro longa-metragem data de 25, 26 anos atrás, e já se focava em jovens. O tempo se passou, mas continuo interessado nos jovens enquanto presença, vontade e rebeldia. Eu ainda tenho estes sentimentos nos meus 50 anos. Mas acredito que os protagonistas jovens de Os Demônios do Amanhecer possuem características típicas de um cinquentão como eu.
Por exemplo, eles entendem que um relacionamento se modifica com o tempo. Existe a vontade de um amor louco e apaixonado, mas eles sabem que estes sentimentos se transformam com os anos, e se tornam algo diferente. O filme traz a possibilidade de se relacionarem de diferentes formas, com muitas pessoas, ao contrário do que ocorria nos meus primeiros filmes. Em Mil Nuvens de Paz (2003), eu trazia a ideia de um casal unido contra todos. Agora, discuto a permanência no tempo com várias possibilidades de união. Para mim, esta foi a principal mudança nestes 25 anos.
Além disso, me identifico muito com esse caráter roqueiro da juventude. Luz Casal, a artista espanhola, disse numa entrevista que ainda se entende como roqueira porque se posiciona contra muitas coisas, e gosta das rupturas à norma. É o que tento fazer em meus filmes.
Continuo interessado nos jovens enquanto presença, vontade e rebeldia. Eu ainda tenho estes sentimentos nos meus 50 anos.
O filme se inicia com relacionamentos livres a três, quatro pessoas, incluindo uma garota. Mas depois, você se concentra no romance monogâmico entre dois rapazes.
Julián Hernández: É interessante, porque escrevi este roteiro dez anos atrás. Eu queria fazer algo diferente dos três longas-metragens que tinha feito anteriormente. Nestes casos anteriores, tinha sido dificílimo reunir o dinheiro necessário. Fiquei desesperado, em angústia com a minha carreira, sem saber se poderia continuar fazendo os filmes que me interessavam. Por isso, decidi fazer um filme mais simples, mais barato, e com poucos personagens. Roberto certamente não concorda comigo quando eu descrevo Os Demônios assim!
Por exemplo, a escolha de uma mulher trans, que todos os personagens consideram como mulher cis, era algo que, em 2013, quando escrevi o roteiro, não existia muito no cinema — ainda menos, no cinema mexicano. Mas era basicamente uma trama sobre três personagens brigando pelo amor, em chave mítica. Esta estrutura me dava múltiplas possibilidades, era algo bem aberto.
Por isso, ela começa com as possibilidades do poliamor e depois se reduz ao relacionamento entre os rapazes. Era uma maneira de voltar a mim, que ainda pensava em relacionamentos desta forma. Era como os andróginos originais, que se buscam e se encontram. Mas depois, eles enxergam a possibilidade que a união seja diferente. O personagem do bailarino não vai mudar, e precisa continuar buscando afeto em vários lugares. Mas Marco está consciente que seu amor pode vagar por aí, e voltar depois.
Você filma sem rodeios o desejo carnal. Muitos projetos sobre o desejo ente homens se limitam ao amor romântico, ou à insinuação casta do sexo.
Julián Hernández: Para todos os cineastas que estão no cinema mexicano pelo menos desde os anos 1990, isso era muito difícil. Os filmes já eram raros em geral, e os cineastas na faixa dos 20 anos não se sentiam representados nas tramas. Os atores convidados para interpretar adolescentes sempre tinham 25 anos, ou mais. Não havia uma representação da juventude feita pelos jovens e, em especial, estes filmes não abordavam os temas que nos interessavam. Por isso, não se falava do desejo que sentíamos cotidianamente.
Desde os meus primeiros filmes, já queria abordar a sexualidade e o desejo, que me parecem formas naturais de se relacionar com outro ser humano. Um filme abordava este tema, em particular: El Cielo Dividido. Os personagens ali quase não falam, mas sempre têm trocas amorosas. Eu sentia que, nestes momentos, nós nos comunicamos de verdade, e somos o mais honestos possível.
Ainda hoje, estas questões me interessam bastante em virtude do retorno do conservadorismo. Cada vez mais querem determinar o que podemos ver e mostrar. No meu filme anterior, La Huella de Unos Labios, os festivais já manifestavam desinteresse por filmes que mostrassem a sexualidade de maneira tão franca. Vários curadores de festivais nos davam este retorno. Isso existe também entre uma parte dos espectadores, que preferem este retorno ao escuro, ao tabu. Mas para mim, ainda é fundamental seguir abordando o tema. Isso me parece mais honesto.
Acredito que seja importante, sim, adotar um posicionamento contra o conservadorismo. Até porque regredimos muito em relação às conquistas das décadas passadas.
Face a esta onda reacionária atual, acredita que os filmes devam se tornar ainda mais radicais?
Julián Hernández: Posso dizer que sim, mas nunca me pego pensando “Vou fazer um filme radical contra tudo e contra todos”. Os filmes saem assim. É algo inerente à minha personalidade. Vou fazendo escolhas naturalmente, e por acaso, percebo que se tornam radicais, contra as normas. Mas acredito que seja importante, sim, adotar um posicionamento contra o conservadorismo. Até porque regredimos muito em relação às conquistas das décadas passadas. Há muito tempo que lutamos para avançar nestas pautas, seja no teatro ou no cinema. Então, perceber todas estas perdas é algo perturbador. Por isso, sempre que houver a possibilidade de nos posicionar de modo radical, precisamos fazê-lo.
Como percebem a evolução do cinema queer, desde que começaram a fazer filmes? Que caminhos ainda falta percorrer?
Roberto Fiesco: No México, pelo menos, os personagens queer serviam para a chacota e a ridicularização — e imagino que o mesmo ocorra em vários países latino-americanos. Eram motivos cômicos sem mecanismos identitários de reconhecimento, muito menos elementos de uma cultura queer própria. Mas a situação mudou muito nas formas de representação dos últimos 20 anos, e isso vale também para os personagens queer.
De repente, nós nos tornamos o centro de algumas histórias, sobretudo nos curtas-metragens, mas em alguns longas mexicanos também. Criaram-se espaços de visibilidades para estes projetos, como festivais de cinema. Mesmo assim, a distribuição dos filmes com esta temática ainda é minoritária. Não são títulos que chegam ao grande público. Os projetos com afinidades queer que chegam com mais facilidade ao público amplo são as comédias, enquanto gênero e tom. No México, muitas coisas mudaram em termos de direitos para a comunidade LGBTQIA+ — em todo o continente, acredito. Então, avançamos muito em termos de visibilidade. Antes, não víamos nos filmes personagens com os quais podíamos nos identificar.
Mas muitos temas ainda precisam evoluir, é claro. Hoje, existe um olhar potente voltado às narrativas trans e aos feminismos. Isso tem sido aceito com mais facilidade. No México, existe uma grande onda de pessoas vivendo com HIV, por exemplo, mas não são suficientemente representadas nas telas. A própria juventude queer tampouco se encontra nas telas mexicanas. Ainda temos muitas dívidas pendentes com a comunidade LGBTQIA+ no cinema. Falta muitíssimo, sobretudo na tentativa de chegar a públicos mais amplos.
Ainda temos muitas dívidas pendentes com a comunidade LGBTQIA+ no cinema. Falta muitíssimo, sobretudo na tentativa de chegar a públicos mais amplos.
Projetos a respeito da orientação sexual e identidade de gênero são mais difíceis de financiar e viabilizar no México?
Roberto Fiesco: Sim, ainda são. Já foi muito mais difícil, mas ainda é. Uma das coisas que começamos a fazer, vinte e cinco anos atrás, era garantir que os personagens não sentissem culpa por sua orientação sexual. Nos nossos filmes, a sexualidade não é motivo de conflito. Mas quando começamos a fazer nossos projetos, todos os personagens de identidades dissidentes que víamos no cinema se sentiam culpados, sofriam e morriam com frequência. Nos filmes de Julián, os personagens não sofrem por sua orientação ou sua sexualidade, mas por questões de amor e outros temas dissociados de sua orientação. Esta é uma mudança paradigmática importante em relação às obras que se fazia no México.
Claro, é dificílimo encontrar dinheiro para financiar estes filmes. Mas já foi muito pior no passado. Hoje, existem algumas aberturas através de fundos do governo, que permitem financiar obras sobre estas temáticas, embora ainda não sejam são suficientes. De qualquer modo, hoje o olhar se encontra em outras questões — o que também inclui as comunidades indígenas e afrodescendentes. Então algumas formas de dissidências sexuais se tornam marginais.
Parece importante que a homofobia não exista em Os Demônios ao Amanhecer, e que a família de Orlando seja acolhedora, inclusiva.
Julián Hernández: Muitas pessoas me disseram que eu deveria ter tirado essa sequência da família, desde o roteiro. Por isso, esse trecho foi colocado e retirado da montagem algumas vezes. Diziam que a cena não faria falta à trama. Mas ela me parecia importante, porque raramente retratamos as famílias de pessoas LGBTQIA+ — sobretudo quando são solidárias, apoiando a sexualidade do filho. Para mim, era importante. Então não entendi as críticas, assim como ainda não entendo muitas coisas que reclamam em meus trabalhos, sugerindo o que eu deveria fazer ou não. Posso errar muito, mas não entendo quando me dizem o que devo fazer ou não fazer.
Roberto Fiesco: Além disso, estamos pleiteando a possibilidade de mundos melhores. Começamos com El Cielo Dividido, que estreou em 2006. Os protagonistas eram dois jovens numa grande universidade pública. Eles se beijavam, se abraçavam, e manifestavam seu afeto no meio da escola. Era algo impossível na época. Ainda hoje é impossível, em alguns meios, ver dois homens de mãos dadas se beijando, ou duas meninas se beijando. Hoje temos pessoas trans aos 16, 17 anos. Mas isso não existia nos filmes. Por isso, ver nos filmes atuais uma família que aceita a sexualidade do filho, e acolhe o namorado dele de modo amoroso, também é uma mensagem inspiradora ao espectador. Alguns jovens podem assistir a este filme e pensar: “Queria que a minha família fosse assim”. Mas este é somente o caso de Orlando. Marco, no filme, nem mesmo tem uma família. Elis, a garota trans, nunca é acolhida na casa dele. Então apresentamos modelos distintos de famílias, lidando de maneiras distintas com as sexualidades dos jovens.
Ver nos filmes atuais uma família que aceita a sexualidade do filho, e acolhe o namorado dele de modo amoroso, também é uma mensagem inspiradora ao espectador.
A propósito de Elis, fiquei surpreso ao escutar a versão de Como Nossos Pais em espanhol.
Julián Hernández: Sabe, eu pensei em estudar música durante muito tempo. Queria ser cantor de ópera. Mas sempre gostei muito de descobrir as canções de outros países, e muitos anos atrás, não me lembro como, mas descobri Casa no Campo, e delirei. Fui procurar a cantora, e assim descobri Elis Regina, uns trinta anos atrás. Sempre gostei muito das vozes femininas. Além disso, Elis abriu portas para muitos outros artistas. Ela sempre incluiu, em seu repertório, cantores novos e compositores em ascensão. Eu adoro isso. Então eu imaginei que esta personagem, com sonhos de se tornar artista, gostasse de Elis Regina. Ela é como eu, afinal. Além disso, acho transcendental a letra de Como Nossos Pais. Chamamos uma cantora mexicana, uma roqueira famosa, que adorou a proposta de fazer esta versão.