Na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o cineasta francês Sylvain George foi homenageado com uma retrospectiva de cinco filmes de sua autoria: O Impossível — Páginas Rasgadas (2009), Que Descansem em Paz — Imagens da Guerra (2010), Fragmentos (Minha Boca, Minha Revolta, Meu Nome (2012), Rumo a Madri (2012) e Paris É uma Festa — Um Filme em 12 Ondas (2017). As edições anteriores da Mostra já haviam apresentado Noites Obscuras — Folhas Selvagens (2022), por exemplo.
Em comum, estas obras são marcadas pelo foco em minorias sociais em luta contra sistemas opressores. Os documentários se dedicam à vida e à representação de imigrantes, refugiados, pessoas em situação de rua e manifestantes contra a reforma da educação ou das leis trabalhistas, o que inclui o retrato do movimento dos coletes amarelos. As obras são rigorosas e provocadoras em termos estéticos, evitando qualquer semelhança com o jornalismo. Pelo contrário, George costuma ser enquadrado dentro de um cinema “experimental” ou vanguardista, pelo estilo fragmentado e repleto de citações a grandes filósofos que refletiram acerca das desigualdades de classe, gênero e raça.
O diretor conversou em exclusividade com o Meio Amargo a respeito da exibição de seus trabalhos no Brasil:
Eu pude assistir a alguns filmes seus aqui na 47ª Mostra. O Impossível: Páginas Rasgadas me causou um impacto grande…
Meu trabalho central, desde o começo, foi tentar entender as políticas europeias para as questões migratórias. Pode parecer austero quando dito assim, mas a nossa realidade é ditada pela política, e atravessada pela política. Em 2006, quando comecei a preparar O Impossível, a migração tinha se tornado um tema central nas discussões políticas francesas depois da presença da extrema-direita no segundo turno das eleições presidenciais. Alguns políticos, como Nicolas Sarkozy, construíram sua carreira inteira em torno da questão migratória.
Comecei a trabalhar em um filme em Calais. Algumas pessoas me ajudaram nesta época, como a pesquisadora e curadora Nicole Brenez. Ela cuidava da programação Cinéma du Réel e me perguntou se eu tinha outros filmes em Super-8, porque meu primeiro filme foi nesta bitola. Fui a Calais e propus fazer um pequeno filme sobre esta cidade fora da França, repleta de pessoas do Oriente Médio e da África sub-Saariana, que desejam chegar à Inglaterra. Trabalhei ao mesmo tempo com o digital e com a película. A primeira versão de O Impossível durava 20 minutos, em Super-8.
Parte dela era em estilo found footage, decorrente do trabalho de Lionel Soukaz. Esses trechos são uma espécie de panfleto cinematográfico e político. Ao mesmo tempo, continuava a filmar os movimentos sociais em Paris. O formato foi se criando desta maneira, em cinco partes, começando em Calais, em preto e branco, Super-8 e sem som. Depois chega a cor, e então Paris com os movimentos sociais. A parte 5 denuncia de maneira muito crítica as pessoas que apresentavam um discurso revolucionário nos anos 1970, e participaram de maio de 1968, mas depois se juntaram ao grupo de Mitterrand, quando ele foi eleito em 1981.
Em 1981, o Partido Socialista chegou ao poder. Havia muita esperança em torno desta conquista. Evidentemente, o PS não honrou todas as suas promessas.
Em 1981, o Partido Socialista chegou ao poder. Foi a primeira vez que a esquerda chegou ao poder na França desde 1936. Havia muita esperança em torno desta conquista. Evidentemente, o PS não honrou todas as suas promessas, e rapidamente se converteu à social-democracia e ao liberalismo. Implementaram políticas de austeridade, e se tornaram “uma esquerda mais à direita do que a direita”, como se diz no filme. Um dos monstros decorrentes deste processo foi Emmanuel Macron.
Nos anos 1980, havia a ideia que o PS encarnava as ideias da esquerda, e que, apesar dos problemas, ele ainda seria melhor do que a direita. Sequestraram todo o espírito crítico e os posicionamentos políticos mais complexos. Houve movimentos importantes na época, como a Caminhada de Crianças Imigrantes, amparada pelo PS. Mas não havia uma voz dissonante, potente e forte.
Este é um filme selvagem, improvisado, e meu primeiro trabalho com distribuição. O Impossível é meu primeiro filme selvagem sobre a ocupação dos espaços. Na terceira parte, há a ocupação da Place de la Nation. Depois, fiz um segundo filme sobre Madri, e em seguida, Paris É uma Festa. Em paralelo, há meu trabalho que exige mais tempo de filmagem e preparação, que são as minhas obras sobre Calais.
No entanto, parece que o cinema não chegou de imediato no seu percurso. Antes, você fez estudos e filosofia e ciências políticas, além de trabalhar na área social, correto?
Quando eu era adolescente, me questionava muito sobre meu futuro. Rapidamente, decidi que queria ser cineasta. Tomei essa decisão ao assistir a um filme muito ruim de Ingmar Bergman: Fanny e Alexander (1982), que certamente não era o melhor filme da carreira dele. Eu estava com a minha mãe, e ao sair, disse para ela: “Quero fazer filmes”. A decisão foi tomada muito cedo, e eu sabia o que queria fazer. Pretendia fazer cinema sobre temas importantes para mim, e sobre próximas da minha realidade.
Eu cresci na periferia de Lyon, e testemunhava uma realidade que eu não via retratada no cinema francês. Havia poucos filmes sobre a periferia, e ainda menos a respeito de questões pós-coloniais. Queria tratar estes temas dentro de uma pesquisa cinematográfica a mais exigente possível. Não tinha visto tantos filmes assim, mas eu me sentia atraído por um cinema de pesquisa de linguagem. Tinha visto Vigo e Epstein, e eu me encaminhava nesta direção.
Depois disso, quase vinte anos se passaram. Eu venho de um meio onde não se tem acesso fácil à produção cinematográfica, e eu também não tinha contatos na área. Além disso, tive uma adolescência rebelde, então parei totalmente de estudar depois do vestibular. Fui a Paris e vivi a vida por lá, onde é muito difícil conseguir um bom emprego sem um diploma. Eu me confrontei a realidades violentas. O processo foi longo, repleto de errâncias e questionamentos. Tive alguns empregos na área social, que não correspondiam ao meu desejo, mas foram importantes.
Queria fazer um cinema evidentemente político, a respeito de realidades marginalizadas e invisibilizadas na França. Mas não poderiam ser básicos ou desinteressantes do ponto de vista da linguagem.
No meu percurso, encontrei muitas pessoas com dependência química, então me parecia importante me dedicar a estas experiências — além de elas representarem uma maneira de ganhar a vida. Ao mesmo tempo, voltei a estudar, e me direcionei naturalmente às ciências políticas e à filosofia. Fiz um mestrado durante este período. Comecei a amadurecer vários questionamentos, e sempre mantinha a ideia de fazer filmes. Todas as outras coisas enriqueceram o meu percurso e minha abordagem cinematográfica, mas o objetivo sempre foi fazer filmes. Imaginava os filmes que eu faria, os temas, os formatos. Eu me projetava. Assisti a muitos filmes experimentais.
Vinte anos mais tarde, as condições existiram, e decidi investir nesta carreira. Fiz um mestrado em cinema, quando trabalhei sobre cineastas experimentais italianos que trabalham a partir de materiais de arquivo. Isso me permitiu colocar as ideias no papel. Assim encontrei pessoas que abriram portas pra mim, incluindo Nicole Brenez.
Queria fazer um cinema evidentemente político, a respeito de realidades marginalizadas e invisibilizadas na França. Mas não poderiam ser básicos ou desinteressantes do ponto de vista da linguagem. Era preciso fazer filmes que questionassem o meio cinematográfico. Eu não separo a política da estética. Já fui muito atacado por isso. Tem uma pessoa que escreveu sobre meus filmes aqui na América Latina, e diante da primeira parte de O Impossível, disse que se tratava da “pornografia da miséria”. Denunciaram os diretores que utilizam uma linguagem voyeurista e ganham dinheiro com isso, a partir de uma abordagem jornalista muito pobre. Me acusaram disso também.
Para alguns diretores, a miséria se torna um pretexto para criar algo belo em si mesmo. Mas não é, de modo algum, o que eu faço. Acredito que todo ser humano seja dotado de beleza e poesia em si próprio, então não haveria razão para embelezá-los. A estetização da miséria ocorre quando se considera as pessoas e realidades enquanto objetos. Esta é uma abordagem despolitizante. Mas meu caminho é totalmente inverso.
Já tivemos muitas vezes esta discussão no Brasil, entre a estética da fome, a “cosmética da fome” pós-Cidade de Deus, e a chegada de novas vozes periféricas na direção.
Minha abordagem cinematográfica é simples. Considero que toda forma de trabalho, seja ela cinematográfica ou filosófica, tende a interrogar os status quo e as ideias pré-construídas. No cinema, o que me interessa é desconstruir a representação dominante. As representações são frequentemente falsas em relação a indivíduos imigrantes, ou de meios populares. São representações repletas de preconceitos. Meu intuito é justamente desconstruir estas representações para criar outras imagens estéticas e políticas de certos temas.
Vivemos em sociedades onde o sociedades onde o poder, para se sustentar, cria várias divisões entre categorias de pessoas. Colocam os autóctones contra os estrangeiros, os franceses contra os imigrantes, etc. Pode ser uma classe social contra a outra, uma geração contra a outra. O Estado provoca esta rivalidade: por que contratar alguém de 50 anos se é possível contratar uma pessoa de 20 anos por três anos, sem assinar a carteira de trabalho? Isso cria economias para o empregador, e gera conflitos geracionais. Isso dissocia os indivíduos uns dos outros.
No final, trata-se de políticas públicas concebidas para reger a vida de todos. Elas estão interligadas em princípio. No que diz respeito às políticas migratórias, sobretudo na França, elas possuem um caráter experimental. Os dispositivos são testados num pequeno grupo, e caso sejam aprovados, serão expandidos a um grande número de pessoas. Quando fiz O Impossível, o Estado tinha criado os Centros de Retenção. A França expulsa aproximadamente 40 mil pessoas por ano. Para expulsar 40 mil por ano, precisam reter aproximadamente 250 mil pessoas por ano.
Para ganhar tempo, instalaram tribunais dentro dos Centros de Retenções, onde os imigrantes são julgados e recebem o veredito: expulsão ou não. Isso foi denunciado por sindicatos de advogados, porque a instauração de tribunais nestes centros feria os princípios básicos da justiça. Sarkozy lançou esta ideia em caráter de teste, para que a justiça possa ser estabelecida fora dos tribunais. Os dispositivos são testados em certa categoria da população, visando expandir mais tarde. As medidas policiais extremamente violentas, praticadas inicialmente nas periferias, se estenderam hoje à população geral. As manifestações são reprimidas com práticas policiais testadas na periferia.
O movimento dos coletes amarelos foi o primeiro levante operário desde a Comuna. A reunião destas forças populares surpreendeu todo mundo e botou medo nas classes dominantes.
Isso explodiu com o governo François Hollande, algo que eu mostro em Paris É uma Festa. As pessoas são isoladas durante as manifestações. Os cortejos são enquadrados, e as pessoas desfilam ao lado da polícia. Nunca tinha visto algo assim. Emmanuel Macron segue este caminho e o aprofunda. Ela se apoia nesta polícia para garantir o poder, ao mesmo tempo em que estas forças transmitem uma sensação de impunidade porque o Estado precisa delas para se manter.
O movimento dos coletes amarelos foi o primeiro levante operário desde a Comuna. Não é como os eventos de 1968. A Comuna era uma revolução operária, não burguesa. No caso dos coletes amarelos, as reformas trabalhistas foram impostas até que os operários se revoltassem. A reunião destas forças populares surpreendeu todo mundo e botou medo nas classes dominantes. Evidentemente, neste caso, chamaram a polícia para reprimi-los, como vimos. Foi super violento, com balas de borracha nos olhos, por exemplo.
Estas políticas têm em comum o fato de serem políticas públicas, que dizem respeito, portanto, a todo mundo. As pessoas se sentem muito diretamente afetadas por essas medidas. Além disso, são praticadas por sujeitos eleitos para representar a população inteira. As consequências desta política são mortais — e digo isso sem qualquer senso de retórica. Portanto, quis mostrar isso no filme. Fiquei comovido de ver estudantes lutando contra as reformas e que, ao mesmo tempo, demonstravam sua solidariedade aos imigrantes.
Em O Impossível, na quarta parte, estes estudantes refazem o gesto da Comuna diante da prefeitura de Paris, quando ocuparam este espaço. E lá, expressaram o apoio aos imigrantes. Para mim, era evidente conectar estes diferentes aspectos, inclusive por meios estéticos. A primeira parte do filme é silenciosa, em Super-8 e em preto e branco, com alguns instantes vermelhos. Na terceira parte, temos o preto e branco digital, e o único momento de cor também ocorre em vermelho. Existe uma correspondência temática, mas também estética.
Acho impressionante a intimidade que você desenvolve com as pessoas que filma. A câmera está muito próxima, mas não parece alterar as conversas e interações entre eles.
Quando filmo os movimentos sociais, busco construir uma relação com as pessoas a longo prazo. A princípio, explico quem eu sou, por que estou lá, e que tipo de cineasta eu procuro ser. Explico a diferença entre uma abordagem cinematográfica e aquela que um jornalista poderia trazer. Ou seja, eu me apresento de maneira que eles saibam com quem estão lidando. Algumas pessoas não se interessam pela proposta e vão embora, mas outras ficam curiosas. Depois, passo bastante tempo com essas pessoas. Não filmo de imediato. Não busco imagens a qualquer preço.
Assim nasce um diálogo, e ao final, eles me aceitam, algo que não é nada fácil, porque eu não apenas me relaciono com algumas pessoas, mas me insiro num grupo vasto. É importante que eles compreendam meu objetivo de entender melhor esta realidade, pela perspectiva das políticas migratórias. E para compreender, eu preciso passar tempo com eles. Eu preciso da experiência deles — não os considero vítimas, nem pessoas por quem ter piedade. Eles são indivíduos como eu e você. É uma posição de respeito absoluto.
Eu às vezes lhes dou poder até demais. Algumas pessoas vivem situações complicadas: foram violentadas, insultadas, abusadas. Muitas delea possuem distúrbios psíquicos, ou se tornaram dependentes de alguma droga. As pessoas em situação de rua viveram situações extremamente violentas. Então elas percebem que possuem o poder de me dizer não. Como se me dissessem: “Você está no meu território, e você fica aqui se eu deixar”. Às vezes, as relações de força se tornam delicadas. Nestes casos, preciso dizer, com calma, que desejo aprender com eles, mas também tenho o direito de me encontrar naquele espaço com eles. É um espaço público. Eles têm o direito de dizer “Não me filme”, mas não podem me dizer que não posso filmar este espaço, ou este tema.
Claro que existem relações de poder, e elas precisam ser desconstruídas. Entretanto, muitas vezes, o contato se passa muito bem. Eles entendem minha abordagem, percebem que não é uma relação sensacionalista. É uma troca igualitária: eu dedico meu tempo a eles, e eles dedicam tempo a mim. Temos acesso a realidades desconhecidas, porque o tempo passado juntos permite mergulhar em profundidade nas relações. Não paramos nas primeiras imagens e nas informações básicas. As trocas se tornam cada vez mais substanciais. Alguns deles mesmo me dizem: “Venha aqui, quero te mostrar algo, e te dizer como as coisas funcionam aqui”.
Tento não intervir muito. Mas nunca existe um documento puro, porque a presença da câmera modifica a realidade.
Em termos cinematográficos, tento não intervir muito. Obviamente, a câmera está presente, então ela pode provocar situações, porque nunca será neutra. Algumas pessoas passam a interpretar diante das câmeras, então é preciso acalmá-las. O que chega ao filme, no final, é cerca de 10% de tudo o que eu filmo, porque a preparação é longa e fundamental. Conservo apenas o que me parece mais justo e forte. Não quero fazer uma reportagem, então a única coisa que peço a eles é que não olhem para a câmera. Quero dizer: “Estou com vocês. Quando eu os filmo, vocês sabem que estão sendo filmados. Não roubo imagem nenhuma”. O que me interessa é testemunhar uma situação, para saber como ela aconteceria caso eu não estivesse presente.
Neste sentido, há um grau de ficcionalização. Nunca existe um documento puro, porque a presença da câmera modifica a realidade. Mas eu reivindico isso, de certa maneira. As realidades apresentadas são o fruto de minhas observações e da maneira como eu tento apreendê-las com eles. Podemos contestar ou não, estar de acordo ou não, mas o resultado é justo por este ponto de vista. A ideia é o diálogo, a comunicação, o respeito do outro, e saber quando filmar, ou quando não filmar. Às vezes, não filmar e apenas estar com eles me proporciona uma interação que alimentará o filme depois.
No caso das manifestações, é diferente, porque existem muitas pessoas presentes, e não dá tempo para explicar tudo para todos. Mesmo assim, digo rapidamente, para que eles entendam o essencial. Por exemplo, em O Impossível, no final existe uma jovem que fala à câmera, e eu adoro esta parte do filme. Ela me perguntou: “Quem é você, e o que faz aqui? É dos coletes amarelos?”. Eu expliquei que não, disse que eu era cineasta. Estava fazendo um filme, e me interessava pelos movimentos sociais. Aí ela concordou, e quis falar para a câmera.
Ela viu a diferença, porque a maioria dos cinegrafistas já tinham captado imagens e ido embora, mas eu fiquei até o fim. Eu estava captando cenas que não costumam aparecer na mídia dominante. Ela dizia: “Filma, filma!”. Ela me deu um testemunho que pode parecer ingênuo, mas que considero muito potente. Algumas pessoas atacam a fala dela, porque são burgueses e se reconhecem nela. Por isso, desenvolvem um sentimento de culpa. Algumas pessoas que defendem meu trabalho sobre a imigração viram O Impossível, e depois disseram que as falas dela eram grosseiras. É problemático, porque isso mostra que estas pessoas, pretensamente favoráveis aos migrantes, na verdade mantêm um discurso de caridade. Minha abordagem é bem diferente.
Ao mesmo tempo, você não parece interessado em fazer com que essa burguesia mude de ideia, reflita sobre seus atos e se transforme. Seus filmes não parecem destinados a esta parcela da sociedade.
Eu não faço um cinema didático ou proselitista. Nunca digo às pessoas o que devem pensar, nem fazer. Não suporto que me digam para fazer isso ou aquilo. Faço o filme que eu gostaria de assistir, e que participa do meu horizonte de expectativas dos pontos de vista cinematográfico e político. Nestes casos, eu expresso meus posicionamentos políticos. Não sou um indivíduo neutro — não acredito na neutralidade, e nem quero ser passivo. O ato de fazer filmes equivale a um posicionamento político, mas isso não se confunde jamais com um cinema de propaganda.
Alguns dizem que é um cinema militante, mas ele nunca indica às pessoas como devem agir. É um cinema pensado para questionar as realidades tidas como naturais. Como diria Pasolini, ele serve para “colocar em crise os estados de normalidade”, porque se consideram normais algumas realidades que, para mim, não têm nada de normal. O cinema que eu tento construir vai de encontro às ideias preconcebidas, e tentam abrir o mundo a novas reflexões, aqui e agora. Isso me parece muito potente.
Não sou um indivíduo neutro — não acredito na neutralidade, e nem quero ser passivo. O ato de fazer filmes equivale a um posicionamento político.
No Brasil, o cineasta Zeca Brito afirmou, a respeito de seus documentários políticos, que tinha a pretensão de proteger os estudantes da violência policial, porque a câmera dissuadia certas agressões do Estado. Mas você não me parece ter uma abordagem semelhante.
Não tenho a pretensão de proteger as pessoas. É claro que a câmera pode ser muito ambivalente. Ela pode dissuadir gestos policiais violentos, algo que eu vi inúmeras vezes em Calais e nas manifestações. Existe uma eficiência direta relacionada à presença da câmera sobre a violência policial. Isso se torna cada vez mais raro, mas pode acontecer. Uma vez filmados, gestos de violência pelas mãos dos policiais podem ajudar a abrir um inquérito ou um processo contra a polícia. Por isso, cada vez mais as pessoas têm câmeras nestes momentos.
Hoje em dia, sempre que tento filmar as manifestações, recebo balas de borracha. Já me atiraram na perna e na câmera, de propósito. Quebraram meu microfone, por exemplo. Há uma vontade deliberada de atacar os jornalistas, os cineastas, além de destruir o material ou confiscá-lo. Logo, a câmera representa um perigo para estas pessoas.
Mas meu objetivo não é dizer: “Filmo para proteger as pessoas”. De modo algum. Busco revelar a potência política, estética e poética de certos gestos proferidos por indivíduos em situações minoritárias, em um contexto político e histórico totalmente fascista. Estamos em um novo fascismo na França, e no mundo inteiro.
Busco revelar a potência política, estética e poética de certos gestos proferidos por indivíduos em situações minoritárias, em um contexto político e histórico totalmente fascista.
A frase “a câmera é uma arma” se tornou muito famosa nos anos 1970, e de certa maneira, isso é verdade. Ela é uma arma de conhecimento, porque a produção de conhecimento é uma arma que permite enriquecer um domínio, desenvolver um espírito crítico e fomentar um olhar questionador a convenções e situações impostas. Mesmo assim, isso sempre me despertou certa estranheza, porque a finalidade de um fuzil é matar o outro.
Esta ideia da câmera-arma foi apropriada por vanguardas cinematográficas fascinadas pelo “real”. Os mesmos atos que alguns chamaram de terrorista foram interpretados por outros como “atos radicais perpetrados por uma minoria vanguardista num contexto pré-revolucionário”. Não me filio a este grupo. Acredito que a finalidade de uma câmera não seja matar o outro.
O que me parece interessante é construir ferramentas alegóricas. As alegorização é a petrificação do mundo, é a mortificação do mundo. Uma imagem capaz de alegorizar o mundo, petrificá-lo como Medusa, é totalmente diferente. Em termos estéticos, tento construir alegorias contemporâneas. Não barrocas e nem modernas, como foram conceituadas por Benjamin. A ideia de petrificar o mundo permitiria congelá-lo enquanto tal, criar uma imagem dialética onde o presente e o passado se espelham, e um se redime no outro.
Nesta redenção, há uma forma de alegorização e de destruição das realidades construídas e preestabelecidas. Mas não falo da desconstrução niilista, e sim do caráter destruidor que põe abaixo os muros, não pelo prazer dos escombros ou pelo amor às ruínas, mas pelo caminho que se abre a partir disso, pela multiplicação dos mundos.
Podemos colocar em prática um cinema movido por um caráter destrutivo, como diria Benjamin, não pela satisfação imediata da destruição em si — algo que reproduziria o gesto aterrorizante e terrorista do Estado —, mas porque, ao destruir esta realidade, outras realidades aparecem. Busco o cinema da multiplicidade, não aquele da redução do mundo a uma visão unilateral.