A vida de Cris Martins e sua família chegou a um público ainda maior no último sábado, 23 de novembro. O casal pernambucano de influenciadores digitais, junto aos quatro filhos, constitui o tema do documentário Tijolo por Tijolo, exibido na 11ª Mostra de Cinema de Gostoso. O filme dirigido por Victoria Álvares e Quentin Delaroche acompanha dois anos na rotina desta família, que encontra nas redes sociais um meio de sobrevivência conforme lida com uma gravidez inesperada e encara dificuldades para reformar a casa.
Em São Miguel do Gostoso, diante da tela gigantesca a céu aberto na Praia de Maceió, mais de 600 pessoas riram e se comoveram com a trama leve, apesar de lidar com temas complexos como o racismo ambiental e a precarização do trabalho. Os méritos cabem tanto aos ótimos personagens quanto aos diretores, que se concentram nesta “mulher real” — nas palavras da cineasta — para despertar tamanha identificação.
O Meio Amargo conversou com Victoria Álvares:
Como Cris e a família receberam a ideia de um filme a respeito deles? Eles tinham expectativas de aumentar a repercussão para suas pautas sociais, ou para o trabalho como influenciadores digitais?
Conhecemos a Cris, na verdade, durante o desenvolvimento de outro documentário. A gente já se conhecia num contexto de movimento social: eu e Quentin fizemos vídeos de impacto, logo no início da pandemia, e Cris colaborava também com esse movimento social. Paralelo a isso, a gente começou uma pesquisa de personagens, e falamos com várias pessoas, de diversos territórios. Uma dessas pessoas foi Cris. Quando explicamos que o projeto abordava disputa política no bairro, a Cris já se identificou e disse: “Nossa, isso é a minha cara! Eu sou assim, meu irmão é assim”. Então mantivemos o contato. Depois houve uma nova onda da pandemia, quando todo mundo precisou ficar em casa.
A gente filmou muito, mas também passou muitas horas juntas sem filmar. É isso que explica a intimidade, a confiança.
Retomamos o contato para filmar quando já tinha vacina, e aí tudo tinha mudado na vida de Cris. Esse círculo de pessoas com quem ela se relacionava não era mais o mesmo. Ela tinha descoberto a gravidez. As questões mais importantes na vida dela tinham mudado muito em relação à pesquisa de personagem inicial. Mas a gente tinha estabelecido uma relação, um vínculo muito forte. Então, explicamos pra ela que aquele documentário não aconteceria mais, mesmo assim, a gente via potencial para um filme aqui. Perguntamos se ela topava que a gente continuasse acompanhando o dia a dia da família. Ela foi muito aberta, muito generosa.
É uma relação estabelecida além da filmagem: a gente filmou muito, mas também passou muitas horas juntas sem filmar, fazendo várias outras coisas que não estão nas câmeras. É isso que explica a intimidade, a confiança que a gente conseguiu estabelecer com Cris, com o Albert [marido dela], as crianças e todo o entorno ali.
Seus personagens estão acostumados a ser filmados. Eles têm uma relação particular com a imagem.
Sim, e é importante frisar que Cris é uma mulher preta, então existe uma relação particular ali. O cinema é uma arte bastante elitista, a gente sabe. Normalmente, quando a figura do diretor está por trás das câmeras, ela faz recorte da realidade, de cima para baixo. A gente estava, obviamente, fazendo recorte da realidade, mas tentamos olhar nos olhos das pessoas. Esse é o cinema que nós gostamos de fazer, eu e Quentin. É nossa escolha política nos posicionar dessa forma.
Então foi assim com Cris, em Tijolo por Tijolo. Foi assim também em Bloqueio, com os caminhoneiros durante as manifestações, quando alguns deles pediam intervenção militar. A gente não estava ali em posição de julgar. Não significa que a gente não tenha uma opinião, mas conseguimos ser honestos com essas pessoas, e exercer uma escuta ativa também. Não quero chegar como salvadora, nem detentora de todas as respostas, porque eu sou artista e faço cinema. Estou filmando ser humano aqui. Não é um objeto; é uma troca de relações humanas.
A gente não estava ali em posição de julgar. Não significa que a gente não tenha uma opinião, mas conseguimos exercer uma escuta ativa também.
Agora, nesse circuito de festivais, o público da cinefilia está descobrindo Cris e Albert, mas o público deles nos conhece há nos anos, porque Cris filma a gente, ela filmou durante toda a gestação, em festa de de Natal, festa de aniversário. No próprio filme, a gente integra isso, porque também tem uma linguagem de álbum de família. A gente começa com fotos, arquivos de família e, no final do filme, as imagens de Quentin e minha estão integradas na narrativa do filme. É uma história humana que vai se desenrolando ao longo do tempo.
Se a gente parte para uma reflexão sobre a estética e a linguagem, tem essa evolução. Cris e Albert se conheceram na época do Orkut. A gente vê que as primeiras imagens do filme são fotos escuras, pixelizadas. No final, termina com uma GoPro, então, é uma evolução da imagem e das relações também, ao longo do tempo.
Acredita que a presença da câmera tenha influenciado os acontecimentos? Penso especificamente na luta de Cris pela laqueadura, com médicos e cirurgiões filmados ao vivo.
Eu acho muito interessante perceber o quanto ela é perspicaz também, porque a gente gravou todas as consultas de pré-natal de Cris. A gente tinha autorização do responsável pelo hospital, mas era uma negociação com cada médico que atendia. No SUS, a mulher grávida não escolhe o médico, é aquele que estiver ali de plantão. Então, foi uma negociação com cada médico. Os médicos que autorizaram eram filmados, e os que não autorizaram, a gente não filmava, fazia outro enquadramento.
Quando foi chegando a termo a gestação, Cris disse assim: “Se só puder entrar uma pessoa, vai ser Vic ou o Quentin na hora do parto”. Obviamente, é porque a gente tinha uma relação de proximidade, de confiança, mas não só por isso: é porque a câmera exerce poder. Ela estava à vontade com essa câmera, mas também entendia que, enquanto usuária daquele serviço público, a presença de uma câmera poderia resguardá-la de certa forma, porque seria testemunha do que estava acontecendo. Então foi algo que ela própria entendeu desde o início e usou a seu favor, porque ela é uma pessoa muito sagaz.
Cris estava à vontade com a câmera, mas também entendia que a presença da câmera poderia resguardá-la, porque seria testemunha do que estava acontecendo.
Nós passamos dois anos filmando com Cris e Albert, eles nunca disseram para a gente: “Olha, não filma isso”. Mas a também gente entendia, às vezes sem falar. Tinham momentos tensos, muito complicados, e então a gente nem ia querer pegar para a câmera. Nosso objetivo não era fazer filme miserabilista, e sim falar sobre outro Brasil, um Brasil que segue lutando, resistindo e sonhando
Temos o costume de criticar plataformas de conteúdo pela precarização do trabalhador, mas vocês trazem um ponto de vista menos maniqueísta sobre as redes sociais. Como enxerga esta relação?
É uma questão muito atual, e a gente ainda não tem uma resposta fechada enquanto sociedade. Estamos justamente no olho do furacão, tentando entender. Falando da minha perspectiva individual, era muito chocante ver Cris, por exemplo, em pós-parto, ainda com pontos, três, quatro dias depois da operação. Ela já estava em pé para poder fazer vídeo para a Kwai, porque se ela chegasse a 25 vídeos no mês, ela ia ganhar um valor fixo. Para mim, aquilo ali era uma violência. Para fazer 25 vídeos no mês, você precisa roteirizar, editar, filmar, editar, postar, fazer texto — é muita coisa.
Então, de fato, eu não romantizo nem pouco as big techs. Acho que existe uma pulverização e exploração reais dos meios de trabalho. Mas eu também entendo que a história de Cris é outra, o corpo de Cris é outro. Os objetivos, necessidades e urgências de Cris e da família dela são outros, e não cabe a mim determinar o que ela deve ou não deve fazer. Estamos falando de uma mulher que ficou desempregada durante a gestação. Ela conseguiu se virar de maneira criativa para obter algum recurso, construir a casa e cuidar dos filhos durante a pandemia. Ela é muito grata pelas redes sociais.
O filme provoca reflexões sobre a justiça reprodutiva, sobre racismo ambiental, sobre a maternidade real e uma série de assuntos que atravessam a vida de cada cidadão.
Hoje, o sonho de Cris é se tornar uma grande influenciadora, é viralizar, conseguir parceiros, publicidade, e ganhar dinheiro com publicidade. Afinal, é uma família com quatro filhos, que quer ter condição de pagar uma saúde de qualidade, uma educação de qualidade. Enquanto sociedade, nós precisamos pensar a respeito, mais do que julgar as pessoas. Por isso às vezes é tão difícil dialogar com certos grupos sociais. Às vezes pensamos: “Sou da academia, sou da universidade, então eu entendo tudo sobre tal grupo”. A pessoa pode ser especialista no assunto, mas não viveu no corpo da outra pessoa. Ela não viveu aquela outra perspectiva. Quando a gente faz filmes — e essa é uma escolha política minha e de Quentin, a nossa forma de realizar —, não é possível se colocar na posição de detentor do saber. A gente não quer dar respostas, mas provocar reflexões sociais.
Tijolo por Tijolo é um filme que provoca reflexões sobre a justiça reprodutiva, sobre racismo ambiental, sobre a maternidade real e uma série de assuntos que atravessam a vida de cada cidadão. A gente gostaria, com esse filme, de suscitar reflexões. O pessoal do racismo ambiental e da arquitetura, por exemplo, pode debater a partir deste filme. Para quem estuda redes sociais e o poder das big techs, além da exploração da mão-de-obra, ou mesmo maternidade e justiça reprodutiva, o filme pode ser uma ferramenta de reflexão. Nós não temos a pretensão, nem a arrogância, de achar que nosso filme vai resolver o problema de ninguém no mundo, porque não vai. A gente só quer trazer a nossa contribuição, com o nosso trabalho, que é fazer cinema.