O primeiro dia de exibições à imprensa no 51º Festival de Gramado trouxe algumas surpresas, para o bem e para o mal. Com dois longas-metragens e dois curtas-metragens exibidos, o espectador se deparou com alguns dos aspectos mais refinados do cinema brasileiro, e também com seus piores vícios, no intervalo de uma única noite. Isso nos leva a pensar, de fato, nas diferentes ambições que o evento busca equilibrar.
A noite de abertura trouxe, fora de competição, a estreia brasileira de Retratos Fantasmas, documentário dirigido por Kleber Mendonça Filho. Nesta obra profundamente pessoal, ele busca intercalar três aspectos essenciais ao seu trabalho como artista: a formação familiar, as transformações do Recife e a paixão pelo cinema (compreendido enquanto arte e enquanto circuito exibidor, com as salas de rua).
A montagem excepcional de Matheus Farias (com um olho clínico para ritmo e estrutura) e o roteiro fluido do próprio cineasta, na função de narrador, permitem que a obra escape a qualquer didatismo banal a respeito do amor ao cinema e da importância de preservar o patrimônio. A obra vai além, incorporando elementos de ficção, misturando fatos a memórias (reais, inventadas?), o íntimo ao coletivo, o privado ao particular. Os fantasmas do título se materializam mais de uma vez na trama, até a divertidíssima cena de conclusão. Leia a nossa crítica.
Assim, o autor parte da fala sobre si próprio e sua filmografia (ele filma a esposa, os filhos, relembra a produção de O Som ao Redor e Aquarius) para chegar a uma digressão acerca da gestão pública, da nossa relação mutável com as artes e com as salas de cinema enquanto palcos do ritual cinematográfico. Discute religião, política, história, sociedade. A pretensa autobiografia se converte na autobiografia de uma cidade, e de sua relação com os indivíduos acolhidos por ela.
Esta escolha marcou um belo início para Gramado, privilegiando o cinema de autor, as escolhas arriscadas de gênero e linguagem, além de uma vertente politizada — ouviram-se vaias em duas ocasiões a cada vez que o patrocinador Havan, do bolsonarista Luciano Hang, era exibido na tela. Todas as falas no palco, dos diretores e equipes, evocaram a luta pelo cinema libertador contra o governo anterior, que “detestava a arte”, segundo as repetidas falas. Andamos no bom sentido.
Os primeiros curtas-metragens também criaram expectativas altas para esta mostra competitiva. Yãmî Yah-Pá imagina um Brasil pós-apocalíptico, com poucos recursos de água e comida, imerso numa guerra civil. Neste contexto, uma mulher indígena se esconde do ataque de pessoas brancas. Na cena inicial, ela enterra a filha, sua única companhia neste período de isolamento forçado.
Devido à semelhança deste cenário com o Brasil sob Bolsonaro, o cineasta Vladimir Seixas não produz nenhuma mudança estética para representar o país futurista. Esqueça os hologramas, telas translúcidas e afins. Observamos a mulher caçar peixes, acender o fogo, filtrar a água com um mecanismo caseiro. O caos nunca pareceu tão realista, e por isso mesmo, natural.
O curta retrata muito bem a banalidade da violência institucional, praticada sobretudo contra a comunidade indígena. O cuidado exemplar com enquadramentos, fotografia e ritmo, através da montagem, revela uma equipe coesa, capaz de observar e contemplar sem jamais perder de vista os objetivos dramáticos e poéticos da fábula. Ele também nos permite conhecer uma excelente atriz indígena, Rosa Peixoto, que conduz o roteiro inteiramente escrito em língua originária.
Talvez o curta-metragem Deixa, de Mariana Jaspe, não possua o mesmo profissionalismo e refinamento do filme anterior, porém se demarca pela ambição narrativa. Em quinze minutos, deseja se aproximar do melodrama entre diferentes gerações e núcleos de pessoas negras se relacionando afetivamente. Há o romance entre os personagens de Zezé Motta e Dan Ferreira, o ex-marido aproveitador dela, a neta prestes a nascer, a organização da retirada dos objetos do ex-companheiro.
Nem todos estes aspectos se equilibram a contento. Demoramos um tanto a entender quem são as vozes ao telefone, e que grau de afetividade estabelecem entre si. O trabalho de som direto e mixagem produz ruídos estridentes e repetidos, que incomodaram no mau sentido do termo (vide o bater de pratos e talheres na pia, e sobretudo o telefone tocando sem parar até o final dos créditos, que irritou vários colegas na plateia).
Mesmo assim, a cineasta se foca no relacionamento intergeracional sem torná-lo espetacular nem exótico. É sempre um prazer assistir a Zezé Motta em papéis que lhe permitam explorar sentimentos contidos ou ambiguidades. A imagem naturalista da sexualidade de pessoas idosas também merece destaque: Jaspe nem oculta a cena de sexo, nem se vangloria da própria coragem ou audácia. O tom desafetado constitui o principal valor desta abordagem.
No entanto, toda a desafetação encontrada em Deixa se confronta ao exato oposto, chegada à exibição do longa-metragem Angela. A biografia se concentra na vida de Ângela Diniz, mulher assassinada pelo companheiro. Ísis Valverde e Gabriel Braga Nunes interpretam os papéis principais. É evidente que, para o diretor Hugo Prata, esta obra constitui um libelo feminista, um grito de alerta contra todos os casos de feminicídio no país. Os letreiros finais sublinham a intenção de construir uma homenagem e prestar justiça à socialite.
Ora, a realização está muito distante de um olhar minimamente respeitoso. Os autores estimam que honrá-la equivale a mostrar seu apetite sexual, sua tendência voraz em relação aos homens. Por isso, a direção oferece mais de uma dezena de cenas de sexo, ultra fetichizadas, com auxílio de trilha rock melosa, cortinas transparentes, fogueiras ardentes, contraluz sedutor. Pense no videoclipe de Total Eclipse of the Heart, de Bonnie Tyler. Mesmo a melhor amiga de Ângela, interpretada por Bianca Bin, ganha direito à sua cena de sexo romantizada, na qual se mostra — adivinha? — toda a nudez das atrizes, mas pouquíssimo dos atores com quem elas contracenam.
Estima-se que esta liberdade sexual tenha sido o motivo da violência do homem, algo que: 1. Legitima os “ataques de raiva” de Doca Street, como se o homem tivesse sido provocado; 2. Reduz a personagem a uma mulher fútil e sedenta. Não se conhece a maneira como Ângela pensa o mundo, seus gostos, preferências, objetivos para o futuro. Nem mesmo a perda da guarda das crianças, fundamental em sua trajetória, ganha uma descrição detalhada. A protagonista parece nem sequer se importar muito com os filhos.
A mão pesada da direção insiste numa sucessão tragicômica de close-ups e fundos desfocados, com frases de efeito protofeministas, porém deslocadas de contexto. “As leis nunca estão do nosso lado”, afirma a heroína, enquanto desfruta do café da manhã luxuoso numa mansão e cogita ir para Paris, ao passo que observa o namorado brincar de tiro com o colega. As ameaças são seguidas de imagens de facas, e as cenas de sexo são intercaladas com instantes em que Ângela se comporta mal numa igreja. O filme depõe contra ela, reduzindo-a a uma pobre vítima mimada e de libido intensa. Uma tristeza.
As coincidências da seleção ainda permitem que elementos de filmes distintos se aproximem, em desfavor da biografia. A representação de assombrações aparece com frequência em Retratos Fantasmas, obra em que o desaparecimento serve para dialogar com a questão da memória afetiva, da História de um povo, da preservação do patrimônio. Ora, quando Ângela afirma se sentir “um vulto”, há pouco por trás da tristeza e melancolia de uma mulher espancada inúmeras vezes, e mostrada 75% do tempo na cama com homens. Em paralelo, o sexo em Deixa mostra-se mais simples e naturalista do que qualquer uma das interações vaporosas de Ângela.
Já a imagem de fogos em Yãmî Yah-Pá permite ilustrar o instante em que uma mãe precisa enterrar a própria filha. O fogo que queima e transforma o corpo infantil em cinzas serve para aquecer a mulher enlutada durante a noite, mas pode representar perigo, caso a luz alerte os inimigos de seu paradeiro. Na ficção de Hugo Prata, o fogo representa apenas as “chamas da paixão” e outros clichês desgastados, além de nocivos para o relato de um caso de feminicídio que, aqui, adquire contornos de “crime passional”, eufemismo utilizado no passado.
Em poucos títulos, o Festival de Gramado passou de um cinema contemporâneo a um cinema antiquado, de uma imagem progressista da sociedade ao fetiche masculino. O cinema engajado de 2023 se encontrou com os tabloides dos anos 1970.