Entre os curtas-metragens apresentados na mostra competitiva do 31º Festival de Cinema de Vitória, impressiona a quantidade de narrativas centradas em fantasmas do ontem e de hoje. Não se trata de figuras assustadoras, pelo contrário: os artistas se focam nos antepassados, em outros artistas que lhes serviram de referência, ou nos desconhecidos que abriram portas para suas conquistas atuais. A jovem safra de diretores compreende a necessidade de buscar no passado as chaves para a compreensão do presente.
Vollúpya, de Éri Sarmet e Jocimar Dias Jr., volta-se ao clube noturno de mesmo nome, que existiu em Niterói nos anos 1990. Este local acolhia pessoas LGTQIA+, incentivava o trabalho de travestis e constituía um refúgio para que estes indivíduos pudessem expressar livremente seus afetos e identidades. Os autores combinam material de arquivo com linguagem de ficção científica, através de um viajante espacial que descobre os registros.
Em conjunção com Se Eu Tô Aqui É por Mistério, de Clari Ribeiro (colaborador profissional de Éri), temos duas obras que visam suprir as lacunas de uma história trans brasileira, retirando estas pessoas de um imaginário de prostituição, miséria e criminalidade. Nos dois curtas-metragens, o espectador descobre as mulheres e homens daquela época, tanto cis quanto trans, divertindo-se, amando, fazendo amizades. Esta é uma iniciativa fundamental para se compreender como subjetividades plurais sempre existiram socialmente, embora tenham sido silenciadas e apagadas.
O mesmo grau de afeto se produz em Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho, de Allan Ribeiro. Fascinado pelo trabalho do documentarista, o diretor narra o episódio em que um personagem de ficção de seus curtas-metragens expressava a vontade de aparecer num filme de Coutinho. Ao saber desta história, o veterano considerou um elogio, e depois aceitou fazer uma figuração em outro trabalho de Ribeiro.
De certo modo, o tom confessional e metalinguístico expande a iniciativa de O Dia da Posse (2021), longa-metragem realizado durante a pandemia, quando o autor também expunha seu corpo e seus afetos. Talvez o novo projeto insista demais na própria frase-título, trabalhando a repetição e o espiral de referências enquanto meio e finalidade. Valoriza Coutinho enquanto se autovaloriza, citando suas obras anteriores e a importância das mesmas no meio cinéfilo. Este procedimento pode despertar algumas ressalvas, mas, afinal, qual o problema em escancarar o orgulho por suas realizações em uma nova realização? O gesto afirmativo se sustenta.
Em Viventes, de Fabrício Basílio, os fantasmas possuem poderes. Podem despertar o vento ou ligar um aparelho eletrônico. Entram em saem de campos de futebol. Metamorfoseiam-se em pães para entrar no corpo das pessoas, até retornarem ao tamanho original e explodirem o organismo de seus receptores-consumidores. O cineasta explora a fantasia em suas concepções mais diversas: ora reproduz o efeito de transparência dos fantasmas, ora simplesmente sugere, via narração e num corte simples da montagem, a transformação da humana em pão.
Neste processo, busca compreender as figuras que habitavam uma vila operária, e de que maneira permaneceriam neste local após a morte, vítimas do descaso das novas gerações e dos especuladores imobiliários. O roteiro não necessariamente se desenvolve de maneira coesa, apontando a caminhos quase distintos (as sequências do pão, da casa e da quadra de futebol parecem pertencer a filmes distintos). Depois, encerra-se abruptamente, em meio a uma frase cuja entonação sugeria algumas palavras a mais. Desperta a sensação agridoce de terminar aqueles romances de Kafka onde o autor abandonava a narrativa com uma frase inacabada.
O aspecto de homenagem se estende a Zagêro, de Márcio Picoli e Victor di Marco. Este último, pessoa com deficiência, retorna a um hospital psiquiátrico desativado onde eram internadas pessoas com deficiência. Relembra que estes indivíduos eram tratados de maneira desumana, sem possibilidade de contar a história por sua própria voz. Em consequência, o diretor e ator decide encarnar as várias presenças possíveis naquele espaço.
Duante quinze minutos, encarna tanto o corpo inerte quanto o paciente caprichoso e difícil de lidar, o sujeito esclarecido que confronta pessoas sem-deficiência quanto à sua ignorância, e o homem LGBTQIA+ reivindicando sua homossexualidade. O curta oscila do drama ao humor, do documentário à farsa. Nunca se sabe se a sequência em questão é séria, se deveríamos rir ou não das situações tragicômicas à nossa frente. Neste desconforto, Picoli e di Marco nos confrontam ao desconhecimento e aos preconceitos relacionados às PCDs.
A ideia dos fantasmas em sofrimento e maus-tratos conduz ao universo do terror de Vão das Almas, de Edileuza Penha de Souza e Santiago Dellape. A dupla imagina um mito original para o Saci, explicando de onde viriam os seus poderes, e como teria perdido a perna. Nesta leitura brutal, situada no quilombo Kalunga, um homem negro é mutilado e deixado à própria morte.
A realização se mostra bastante desigual. Algumas atuações são bastante naturalistas e expressivas, caso de Deusenir Santana, em contraposição ao estilo mais austero e rígido de seu companheiro masculino, no papel principal. A maquiagem e os efeitos da perna cortada são competentes (e favorecidos pela duração curtíssima dos planos em que aparece), enquanto a construção de vapores, projeções dentro de uma garrafa e olhos em chamas soam menos convincentes.
Através desta seleção — que poderia se estender aos curtas-metragens fora da mostra competitiva, a exemplo de Curacanga, Onde Está Mymye Mastroiagnne? e Alienígena —, o Festival de Vitória apresenta as diferentes maneiras (assustadoras, fantásticas, reverenciais, carinhosas) como o cinema contemporâneo lida com as sombras do passado.