O imaginário de jovens garotas em busca de um aborto costuma se cercar de solidão e anonimato. Os grandes filmes recentes sobre o tema se focam em protagonistas angustiadas, buscando soluções clandestinas para a gravidez indesejada, expondo-se a riscos judiciais, físicos e psicológicos. Obras como O Acontecimento (2021), Nunca Raramente Às Vezes Sempre (2020) e 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007) se voltam à impossibilidade de discutir o assunto. O debate a respeito da autonomia feminina se torna secreto.
Neste sentido, Levante adota uma abordagem curiosa para a discussão. Quando Sofia (Ayomi Domenica) decide interromper a gravidez — ela não cogita, em momento nenhum, seguir com a gestação —, todos ao seu redor são avisados desta escolha. A treinadora da equipe de vôlei, as amigas de esporte, o pai, os vizinhos, a diretoria da escola, as associações religiosas estão cientes da decisão da jovem que, no entanto, ainda busca uma maneira segura de realizar o procedimento.
Por isso, a heroína será julgada em praça pública. A diretora Lillah Halla leva o filme de tribunal às ruas, casas e escolas, dissolvendo o julgamento numa perspectiva tão vasta quanto asfixiante. Cada personagem impõe sua opinião à jogadora, e poucos lhe perguntam como se sente, ou o que desejaria fazer de fato. O roteiro oferece amparo na figura das amigas e, eventualmente, do pai solo, mas nunca de instâncias superiores, nem mesmo de psicólogos profissionais.
Uma bela representação destes anos de bolsonarismo e de hipocondria moral, onde cada um se estima legítimo em suas crenças e preconceitos, e digno de apontar os dedos, julgar, condenar, retaliar.
Em consequência, tanto a defesa quanto o ataque provêm de “civis”, de pessoas cuja qualificação para discutir a questão decorre somente de sua cidadania. Assim, o longa-metragem evita a “voz do especialista”, assim como a figura capaz de autorizar ou proibir o aborto. Não há deus ex machina neste caso. Os fatos que lhe ocorrem, entre interromper a gravidez ou não (e de qual maneira) cabem unicamente ao entorno da menina de classe-média. O projeto coloca no ringue figuras de poder e voz semelhantes, para que lutem em pé de igualdade.
Os instantes mais poderosos decorrem das reuniões entre as amigas do vôlei. Halla imprime uma energia frenética, quase alucinatória, nas brincadeiras libertinas entre distintos corpos, identidades e subjetividades. Cada festa ou provocação nos bastidores transmite uma espontaneidade e um vigor raros de captar, e ainda mais difíceis de editar de maneira eficiente. Existe algo próximo do transe, ou de uma catarse coletiva cada vez que as meninas se reúnem.
Levante utiliza então a metáfora das abelhas para representar o trabalho coletivo das mulheres solidárias (as jogadoras, a treinadora) contra as vozes opressoras (a diretoria da equipe e, principalmente, a liderança religiosa representada por Gláucia Vandeveld, única “vilã” digna deste nome). O pai (Rômulo Braga, movido pelo afeto sereno que lhe é peculiar) desempenha o ofício de apicultor, permitindo às câmeras captar a poesia das abelhas trabalhando juntas ao redor desta abelha-rainha-Sofia. O aborto, nesta narrativa, é uma questão fundamentalmente coletiva.
Em contrapartida, alguns instantes freiam a potência da obra. Diversos diálogos soam “escritos demais”, estranhos na embocadura dos atores, em especial, quando divulgam alguma informação evidente. As jogadoras dizem uma à outra que têm chances de ganhar o campeonato, porque venceram os jogos anteriores. Ora, as colegas de equipe ainda não sabiam disso? Os debates acerca dos riscos de um aborto clandestino, da facilidade com que mulheres ricas abortam mediante suborno, e da legalização em países vizinhos como o Uruguai também atingem certo grau de didatismo. Halla parte do princípio que seu interlocutor ainda não disponha de tais informações, precisando ser informado quanto às circunstâncias (o procedimento é caro, pode levar à prisão, está repleto de charlatães, etc.).
Algumas guinadas de temperamento soam igualmente fáceis no que diz respeito às consequências, ou ainda, ao desenvolvimento de processos. O pai, radicalmente contrário ao aborto num primeiro momento, será profundamente favorável na cena seguinte. A olheira observa uma partida, já detecta o talento impressionante de Sofia para o esporte, e oferece a vaga para jogar no Chile — algo conveniente para acelerar o dilema de uma adolescente que se descobre grávida. Bastaria assinar alguns documentos, e em uma semana, tal mudança estaria pronta. Após uma primeira noite de sexo com a amiga, duas jovens debatem o anúncio público de serem namoradas.
Além disso, o desinteresse pelo vôlei surpreende na narrativa a respeito de uma esportista movida por sérias pretensões profissionais. Os jogos apresentados no filme soam típicos de iniciantes. Falta o treinamento básico para as meninas soarem verossímeis durante os treinos e partidas, mesmo que ao nível estudantil. Nesta equipe sustentada por mais de um patrocinador há uma jogadora, de grande potencial internacional, que não sabe fazer uma defesa, nem saltar para o ataque. Como uma ponteira-oposta de segurança poderia jogar assim?
A montagem ainda sugere a possibilidade estranhíssima que um ponto comece com um saque de fundo de quadra, e que Sofia, na entrada de rede, possa receber o saque para começar o ponto. É difícil acreditar que as jovens estejam massacrando adversárias no campeonato, algo reforçado pelas falas motivacionais vagas, oferecidas à talentosíssima Grace Passô. Um mínimo de estudo sobre o esporte, suas regras e sua dinâmica própria tornariam as sequências dignas de crença. Mas a direção privilegia cenas marcantes de treino da academia a fortes instantes de esporte.
Ressalvas à parte, o filme se sobressai pela lógica da gradação — um único conflito plantado ao início, que aumenta, aumenta até explodir. A solução encontrada para o problema de Sofia se mostra muito eficaz, e repleta de significados íntimos e sociais. Conforme a data de uma decisão (para o campeonato e a gravidez) se aproxima, o longa-metragem acelera metáforas próximas do terror e da fantasia, apropriadas a este contexto. Levante exala furor, muito bem transmitido pelos olhos expressivos de Ayomi Domenica e pela vontade de reunir corpos, vozes e opiniões num debate cada vez mais físico — literalmente.
Transparece, desta maneira, a histeria dos conservadores, os ânimos exaltados, a incapacidade de escutar a garota e enxergar no aborto uma questão de saúde pública, ao invés de palco moral onde todos teriam direito a voto. O resultado proporciona uma bela representação destes anos de bolsonarismo e de hipocondria moral, onde cada um se estima legítimo em suas crenças e preconceitos, e digno de apontar os dedos, julgar, condenar, retaliar. O filme impressiona, em especial, pela transição assustadora entre a decisão privada e o linchamento público.