Na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o dia 24 de janeiro foi muito propício aos debates a respeito da noção de cinema experimental. Pelo menos três títulos do dia dialogaram diretamente com esta linguagem: Xamã Punk, exibido na Mostra Aurora; Kenzo ou o Triunfo da Auto-Desintegração e SolMataLua, ambos da Mostra Foco.
Xamã Punk era o grande destaque do dia, pela participação na principal mostra competitiva do evento. O filme dirigido por João Maia Peixoto se situa num Rio de Janeiro pós-apocalíptico, em 2319. Neste contexto, as pessoas são criadas no interior de bunkers há gerações, devido a perigos indeterminados lá fora. No entanto, dois jovens se cansam da clausura e decidem explorar o cenário distópico. Assim, saem ao mundo e perambulam pelas florestas, onde encontram “tribos originárias” de comportamento primitivo e ritualístico.
Apesar do forte potencial desta premissa (como construir um mundo devastado a partir do orçamento baixíssimo?), o resultado deixou o público perplexo na Cine-Tenda de Tiradentes. Os criadores não desenvolvem a mínima lógica desta premissa (os personagens, suas motivações, a configuração do mundo devastado), e quanto às imagens, contentam-se com a câmera digital tremendo a esmo, em cenas desconexas que fetichizam rituais e associam comunidades da floresta com seres animalescos.
Ao final, restava pouco a destacar na obra de imagens desinteressantes, conteúdo disperso, e sem qualquer disposição a explorar a textura imagética, nem a paisagem sonora. Pela temática da 26ª edição, a respeito do cinema mutirão, sua inclusão se justifica, porém eram esperadas propostas mais coerentes e radicais na Mostra Aurora, ao invés de um faz-de-conta zen-espiritual entre amigos. Leia a crítica.
Se a pasmaceira xamânica incomodava no longa-metragem, o curta Kenzo ou o Triunfo da Auto-Desintegração acelerava a montagem e a temperatura através de uma proposta veloz, enérgica, colorida e punk de fato. Colocados lado a lado, Xamã Punk seria uma brisa leve de maconha, enquanto Kenzo representaria uma viagem de ácido. No filme de Pedrokas, as imagens se sobrepõem umas às outras, e então a sons, ruídos, fala, trilha sonora. São acrescentados letreiros, flashes e inserções de todos os tipos.
No entanto, tamanho vigor é dedicado a uma cartilha conhecidíssima do cinema experimental: o filme-sobre-a-dificuldade-de-fazer-um-filme, quando o cineasta, em pane criativa, reclama a respeito da falta de inspiração, até perceber que — vejam só — já estava construindo um filme este tempo todo. A narrativa nos alerta o tempo inteiro sobre o fato de ser cinema, e então sobre a consciência de nos lembrar que é cinema, e a seguir sobre o fato de lembrar sobre os lembretes do fato de ser cinema.
Assim, a metalinguagem em looping volta sempre ao núcleo, à crise de inspiração de uma pessoa que não para de falar de si mesma. Mas tudo bem, parece pensar o autor, porque pelo menos ele assume o caráter autocentrado, o que aparentemente o deixaria imune a críticas por esta escolha. Mais do que metalinguístico, trata-se de um cinema da autofagocitose. Esta tampouco seria a forma mais interessante de cinema experimental — ainda que a Mostra Foco tenha apresentado, até agora, os melhores títulos da 26ª edição.
Felizmente, outra obra da noite nos lembrou que a experimentação não precisa ser o faça-qualquer-coisa de Xamã Punk, nem a saturação egoica em estilo tudo-ao-mesmo-tempo-agora de Kenzo. SolMataLua, de Rodrigo Ribeiro-Andrade, efetua uma colagem de diferentes estilos e formatos de imagem para discutir o racismo estrutural brasileiro, desde os navios negreiros até a descriminação contemporânea nas favelas.
Juntas, as imagens convergem num discurso único e coerente, dialogando umas com as outras ao invés de apenas se sobreporem. É claro que tanto o mosaico do navio negreiro, no início, quanto a reverência às religiões de matriz africana e as perseguições na comunidade pertencem ao mesmo raciocínio. O cineasta deixa tempo suficiente para que o espectador contemple cada imagem, investigando seu estranhamento, decifrando seus códigos de construção. O experimental enfim respira, dialoga, questiona, promovendo reflexão.
Ribeiro-Andrade explora, de fato, a textura da imagem, a montagem e o deslocamento de sons para despertar atenção aos detalhes do enquadramento, enquanto sustenta um mistério, uma abertura às diferentes leituras. Em outras palavras, o cineasta oferece chaves de leitura, sem condicionar a interpretação do espectador, nem deixar a análise aberta ao tudo-vale. Este foi um dos melhores curtas-metragens apresentados até agora, e também uma comprovação de quantas formas cinematográficas podem conviver na gaveta do “experimental”, onde se costumam guardar todas as propostas de difícil definição.
A Mostra Foco exibiu outras belas formas de linguagem em sua Série 2. Pedra Polida, de Danny Barbosa, acompanha a jornada afetiva de uma enfermeira transexual. A diretora encontra um meio-termo precioso entre o cinema narrativo convencional e uma forma mais etérea, aberta, de construção de significados. Por um lado, evoca discretamente o preconceito sofrido pela heroína, pela própria família, e também pela sociedade ao redor. Ou seja, não ignora a transfobia, porém se recusa a transformá-la em conflito central da história.
Por outro lado, abre-se ao romance desta mulher, fugindo à armadilha de um afeto salvador. Ela mantém as rédeas de seu caminho, desprezando a convivência com um rapaz explorador para privilegiar outros homens. Sophia Williams, como protagonista, possui uma atuação discreta, mas marcante (fugindo tanto ao caráter da vítima quanto da combatente), enquanto Paulo Philippe, num papel discreto, demonstra preciosa força no olhar. É louvável encontrar filmes serenos (o que nunca significa ingênuos, nem apolíticos) a respeito de indivíduos transexuais.
O capixaba Remendo, de Roger Ghil, também investiga os afetos LGBTQIA+ por uma perspectiva sem julgamentos. É interessante que o diretor se aproxime do humor popular para descrever um homem bissexual, tentando consertar a dor de um amor partido através do novo relacionamento com uma mulher. Talvez a metáfora do sujeito “mãos à obra”, que conserta geladeiras e outros equipamentos, seja um tanto simples para discutir a identidade que tenta remendar a si mesma. No entanto, o diretor constrói metáforas e objetos que se desenvolvem, enquanto procura uma estética queer despojada, afetada para além do realismo.
Em 25 de janeiro, o principal evento do dia será a leitura da Carta de Tiradentes, resultado do Fórum que propôs debates nas áreas de formação, produção, distribuição, exibição e preservação. Quanto à exibição de filmes, destacam-se as sessões dos longas-metragens Cambaúba, na Mostra Olhos Livres, e Vermelho Bruto, na Mostra Aurora.