Entre os diversos filmes estrangeiros da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, um deles dialoga de maneira bastante próxima com a história brasileira. O mexicano Não nos Moverão, de Pierre Saint-Martin Castellanos, aborda a história de Socorro Castellanos (Luisa Huertas), mulher de meia-idade que nunca conseguiu superar o assassinato do irmão pelos militares durante a ditadura. Vivendo como advogada, numa casa caótica junto ao filho e à nora, ela decide que é hora de encontrar os responsáveis por este crime e se vingar.
A trama se baseia na vivência da mãe do cineasta, que perdeu o irmão em circunstâncias semelhantes. No entanto, o autor evita transformar o filme num suspense sombrio, assim como foge à armadilha de caracterizar os adversários como monstros. Para ele, os maiores desafios consistiam em encontrar o humor corrosivo da mãe, e enxergar a humanidade destes avós, pais e tios que um dia torturaram e perseguiram adversários políticos.
Em entrevista ao Meio Amargo, ele explica o desenvolvimento do projeto:
Esta história é tão pessoal que você mantém o sobrenome da sua família, Castellanos, na protagonista. Por que queria estabelecer a associação direta?
A vontade de fazer o filme nasceu da história da minha mãe, que perdeu o irmão dela muito cedo, devido à ditadura. É claro que existem muitas raízes: por exemplo, comecei a escrever o roteiro quando ela estava muito doente. Pensávamos que ela estava prestes a morrer. Nesta época, por volta de 2018 ou 2019, a situação dela piorava dia após dia. Por isso, eu fiz o filme para minha mãe, enquanto carta de amor e de despedida. Era uma maneira de dizer: “Você pode descansar, pode parar a guerra e se libertar do sentimento de culpa”. Queria que ela vivesse essa fase final da vida em paz.
Além disso, desde que escrevi o meu primeiro roteiro, comecei a colocar mais das minhas experiências pessoais na ficção. Quanto mais pessoal, fica mais verdadeiro e mais fácil de nos identificar com o filme. É difícil se expor desta maneira e encontrar o tom justo de contar a história. Além disso, nem sempre temos todas as informações, o que nos leva a pesquisar as pessoas envolvidas. Mas eu sinto que estou fazendo algo correto quando trabalho assim. Quando eu assisto a filmes honestos, consigo me conectar de maneira mais profunda; eles vão além do mero entretenimento.
Eu fiz o filme para minha mãe, enquanto carta de amor e de despedida. Era uma maneira de dizer: “Você pode parar a guerra e se libertar do sentimento de culpa”.
Era fundamental se manter próximo aos fatos? Pediu aos atores que conhecessem a sua mãe?
Eu falava sobre a minha mãe com Luisa Huertas o tempo inteiro. Isso era muito claro para todo mundo: esta era uma obra familiar, porque o produtor é meu amigo há mais de vinte anos. Conheço meu diretor de fotografia há quinze anos. A maioria da equipe era próxima há bastante tempo — logo, somos uma família também. Por isso, o ator que interpreta o filho no filme, Pedro Hernández, almoçou com a minha mãe, e pôde ver como ela se comporta ao vivo. Luisa me disse que já tinha entendido muito bem a personalidade dela através do roteiro, mas conhecê-la trazia uma nova perspectiva à atuação.
Luisa também estava lidando com a morte de uma pessoa querida. Quando começamos a filmar, ela me pediu para não fazermos tantas tomadas, porque as cenas eram muito difíceis para ela. É uma grande atriz, que certamente poderia fazer quantas vezes fossem necessárias. Mas nós nos tornamos amigos, e eu me importo com ela. Afinal, esta personagem está ferida, mas não chora uma única vez até o desfecho. É algo forte para ela, e para mim também. Quando filmamos, ela sempre atuava impecavelmente desde o começo.
Como sua mãe reagiu à proposta de um filme sobre ela? Fez alguma exigência, ou proibição na hora de retratar esta história?
Não. Eu entreguei o roteiro pronto para ela em 2018, mais ou menos. Ela já sabia, por alto, que eu estava escrevendo algo ligado à história da vida dela. Ela leu tudo rapidamente. Na manhã seguinte, veio me dizer que já tinha terminado, e tinha algumas coisas a me dizer. Fiquei nervoso, é claro. Então ela me disse: “Nesta cena, ao invés de dizer filho da puta, ela deveria dizer arrombado”. “Neste caso, ao invés de chamar de burro, devia chamar de anta”. Ela corrigiu três palavrões, e disse que o resto estava bom. Não precisamos discutir nada quanto aos fatos — afinal, todos os personagens mantêm os nomes reais. É claro que ela compreendeu todas as referências ali, e sabia que se tratava de uma ficção. Então ela percebeu que havia respeito ali.
Eu amo a minha mãe, embora obviamente tenha as minhas críticas. No final, é uma personagem vibrante, e semelhante a ela. Não poderia ser apenas um anjo — não teria a menor relação com a minha mãe se fosse assim. É lógico que eu me preocupava com a reação dela, por ser um tema tão delicado. Quando ela assistiu ao filme pronto, ficou muito comovida e me agradeceu. Fiquei bastante feliz depois disso. Fiz este projeto para ela, para o meu tio e para mim. Se ela gostou, eu já fico satisfeito.
[Vi] uma fotografia em preto e branco, [onde] dois soldados torturam um estudante enquanto sorriem para a câmera. Pensei: estes soldados são membros da família de alguém.
A escolha de filmar em preto e branco é determinante na experiência do filme. Por que tomou esta decisão?
Isso era claro para mim desde o início. Outro elemento que me inspirou a fazer este filme foi uma fotografia em preto e branco publicada em La Noche de Tlatelolco, famoso livro sobre as mortes de outubro de 1968. Nesta imagem, dois soldados torturam um estudante enquanto sorriem para a câmera. Fiquei chocado com isso. Pensei: estes soldados são membros da família de alguém. São pais, maridos, irmãos. O que aconteceria se você reconhecesse alguém de sua família nesta fotografia? Pensei nesta situação, e então nasceu a ideia da obsessão com este momento. Este passado vem da fotografia em preto e branco, então, colocar o filme inteiro em preto e branco era uma maneira de trazer o passado à vida desta mulher. Esta é a subjetividade da personagem que não consegue superar o passado.
Eu tinha muita certeza de que seria em preto e branco, nunca cogitamos fazer de outra maneira — mesmo sabendo que isso pode complicar a carreira comercial mais tarde. Se você não é David Fincher ou Alfonso Cuarón, o preto e branco não ajuda nos negócios. Mas neste caso, eu tinha certeza que era a maneira certa de fazer. Tinha tanta certeza que sempre defendi este princípio, e a equipe concordava. Além disso, eu adoro filmes em preto e branco, como os de Antonioni.
Fiquei surpreso com a quantidade de humor do filme, a partir de temas como o trauma, a tortura e a vingança contra uma ditadura opressora.
Isso vem da minha mãe. É o senso de humor dela: corrosivo, politicamente incorreto. Ela é uma pessoa resiliente, que utiliza o bom humor como forma de superar estes obstáculos que enfrentou. Eu segui o caminho que a personagem pedia. Nunca pensei que estava fazendo uma comédia.
Para ser sincero, a primeira versão do roteiro era muito mais sombria. A referência eram os filmes de Bergman. Os personagens eram mais doloridos, em luto. Meu co-roteirista, Iker Compean Leroux, sugeriu colocar mais humor e evidenciá-lo. Pedi então que ele fizesse uma versão mais detalhada do roteiro, e quando ele me entregou, o texto estava cheio de humor. Eu fiquei irritado, confesso. Pensei: “O que se passa na cabeça dele?”. Mas depois de quatro ou cinco páginas, comecei a rir. Ele tinha razão. Ainda acho que era humor demais, então foi preciso encontrar a dose. Mas tinha sentido seguir por este caminho.
Depois, várias pessoas ficaram interessadas no filme por causa da transgressão cômica a partir de um trauma tão potente pra o México. Talvez eu parecesse mais inteligente se te dissesse: “Sempre quis fazer assim”. Mas não seria verdade. Hoje entendo que o humor é uma ótima ferramenta para lidar com temas difíceis. Sempre gostei de comédias, mas meus filmes anteriores eram dramas sem senso de humor. Depois desta experiência, quero seguir por este caminho sempre que puder.
Meu co-roteirista sugeriu colocar mais humor. Eu fiquei irritado, confesso. Pensei: “O que se passa na cabeça dele?”. Mas ele tinha razão.
Compreendo. A dupla formada por Socorro e seu ajudante é uma delícia de ver.
Sim! José Alberto Patiño é iluminado. Foi muito difícil encontrar o ator para este personagem, que pedia esta luz. Sem o ator certo, a comicidade do texto não fluía. Fiz testes com atores ótimos e comprometidos, mas não dava certo. Faltava alguma coisa, não funcionava. Com José Alberto Patiño, eu não botava fé inicialmente. Ele chegou 30 minutos atrasado para o teste. Meu diretor de elenco disse que a gente deveria desistir dele, porque não era uma pessoa comprometida. Mas resolvi insistir. Ele cancelou outra vez, por ser uma pessoa caótica. Mas quando ele finalmente chegou, me perguntou: “Posso improvisar, ou preciso seguir o texto?”. Falamos para fazer como ele quisesse. Então ele soltou uma metralhadora de frases. Todo mundo ficou impressionado, e ninguém parava de rir.
Então decidimos que precisava ser ele. Eu só avisei: “Você não pode se atrasar, nem cancelar antes das filmagens, senão, eu te mato”. E ele foi a pessoa mais profissional e competente com quem trabalhei. Curiosamente, ele não se parece em nada com o personagem. Ele se apresenta como drag queen, é uma verdadeira diva. Ele costura os próprios vestidos, e faz performances bem extravagantes.
O tema da memória da ditadura é muito importante no Brasil também. Tivemos 21 anos de ditadura, e até hoje, nenhum militar que torturou e perseguiu cidadãos foi responsabilizado por seus atos. Como enxerga a maneira como lidamos com estes traumas?
Uma cineasta argentina assistiu ao filme e me disse: “É uma bela maneira de rememorar esta época por outro ângulo”. Gosto deste raciocínio, porque este drama aborda a compreensão do outro. É algo difícil, quando a outra pessoa nos traumatizou durante tanto tempo. Precisamos discutir como superar este trauma, e como enxergar a humanidade dos responsáveis. Isso não significa justificar, nem desculpar os fatos. Eles precisam pagar pelo que fizeram.
A questão nem é muito pacificada comigo mesmo. Já li muito sobre este tema cultural e sociológico fundamental. Sei que precisamos preservar a memória do que ocorreu, para que nunca se reproduza. No entanto, ao mesmo tempo, são questões humanas: mesmo os militares mais perversos não são demônios: eles são humanos. Eu me escuto dizendo isso e fico incomodado, mas às vezes nos esquecemos disso ao lidar com as feridas. Precisamos lidar com a dor e superá-la: nós merecemos isso. Minha mãe tem o direito de superar isso. Eu tenho, você tem, os brasileiros têm o direito de superar isso. Nunca justificar, apenas buscar a justiça que nos falta.
No fundo, este é o centro do debate de Não nos Moverão. Afinal, os filmes que sempre me interessaram foram aqueles capazes de iniciar um debate, não de nos ensinar o que é certo e o que é errado. Não quero ensinar a ninguém sobre os fatos, nem sobre sentimentos — quem sou eu para fazer isso? Mas quero compartilhar como me sinto. Talvez eu seja ingênuo, talvez essa seja uma utopia. Mas a luta para encontrar a paz e uma possibilidade de entendimento mútuo precisa ser algo em que acreditemos, e que tentemos colocar em prática. Os governos não vão resolver isso. Este entendimento precisa vir de nós também. Coloquemos esta compreensão em nossa rotina. Eu sinceramente acredito que podemos ser pessoas melhores. E assim, ensinamos nossos filhos, que ensinarão os filhos deles. Podemos mudar a configuração das coisas. Se isso significa que estou sendo ingênuo, que seja.