Em 19 de setembro, chega aos cinemas brasileiros Prisão nos Andes, coprodução chilena-brasileira que evoca um episódio real da história latino-americana. Com o fim da ditadura de Pinochet, o Chile manteve cinco ex-torturadores numa espécie de prisão de luxo, semelhante a um resort nas montanhas. Os militares condenados a 800 anos tinham acesso a piscina, aviário, perfumes e jornais variados. Ao mesmo tempo, eram vigiados por jovens que agiam como secretários e assistentes pessoais. Mas quando uma entrevista na televisão revela ao público os privilégios dos criminosos, surge a necessidade de transferi-los a uma cadeia comum.
Em seu primeiro longa-metragem, o diretor Felipe Carmona mergulha neste episódio, convidando para os papéis principais cinco atores que foram vítimas da ditadura chilena, tendo sofrido perseguição e tortura. Ao invés de se colocar junto aos coronéis e generais, prefere acompanhar as contradições deste local pela perspectiva de Navarrete, agente da Penal Cordillera, que ora se alia aos militares, ora se afasta dos prisioneiros.
Prisão nos Andes investe em instantes de estranho humor, além de cenas que beiram o cinema de terror, para registrar o absurdo daquela experiência carcerária. O longa-metragem foi selecionado nos festivais de Chicago, Londres, Guadalajara e Mostra de São Paulo. Em entrevista, Carmona fala com exclusividade com o Meio Amargo sobre o projeto:
De que maneira o filme se apropria de fatos reais da história do Chile?
Não é 100% real, obviamente, porque existem elementos fictícios. Mas a estrutura da narrativa é quase inteiramente derivada dos fatos. De fato, os militares ficaram em uma prisão de luxo, condenados a mais de 800 anos. Tinham diversos privilégios, incluindo uma piscina, e também deram uma entrevista comprometedora à televisão. Mesmos os detalhes foram reais: um coronel lia de fato O Livro de Urântia, uma publicação esotérica, o outro se comunicava em russo. Já a presença do assassinato é fictícia, claro. De resto, mantivemos os fatos.
A direita conservadora e arcaica, que ainda tem muito poder, segue defendendo o legado de Pinochet. Insistem que, sem o golpe militar, o Chile teria se transformado numa Cuba.
Como você avalia a resposta do governo do Chile aos torturadores? Como se lida com a memória da ditadura no país?
Mais do que o governo, penso numa resposta de Estado, uma resposta do país. É complexo: os governos de Bachelet e Boric, atualmente, se destacam pelo compromisso com os direitos humanos. Uma semana atrás, foi o aniversário do golpe de Estado, digamos. Mesmo assim, ainda existe um pacto secreto entre os militares, e desconhecemos o paradeiro de mais de mil pessoas. O governo de Boric iniciou um plano de busca e investigação privada, para que os cidadãos com informações sobre os desaparecidos possam cooperar anonimamente.
Já a direita conservadora e arcaica, que ainda tem muito poder, segue defendendo o legado de Pinochet. Insistem que, sem o golpe militar, o Chile teria se transformado numa Cuba, e o comunismo teria se alastrado por toda a América do Sul. Dizem que hoje viveríamos uma espécie de Guerra Fria. É uma loucura de parte da sociedade, que nega todos os crimes. Faz cinquenta anos, mas a ditadura ainda é uma ferida não cicatrizada.
Como trabalhou com seus atores para evitar converter os torturadores em caricaturas?
Esse foi o primeiro desafio, desde o roteiro. Se eu transformasse os personagens em arquétipos, teria sido impossível para os atores extraírem algo disso. O principal foi dar humanidade a estes homens. Eu me sentava em frente ao computador e pensava: “Eles são seres humanos. São pessoas que têm esposas, netos, que também sofreram, que choravam, que se comoviam lendo um poema, que escutavam música”.
Este é um dos aspectos mais interessantes da história: o estudo da humanidade do mal, desde quando começam as atrocidades até a condenação destes homens. Através de estudos, os psiquiatras constataram que os torturadores eram pessoas perfeitamente normais. Esperava-se que fossem psicopatas, mas não: eram sujeitos que levavam os filhos para a escola, faziam jantares para os amigos e, no dia seguinte, torturavam pessoas como quem vai ao escritório cotidianamente. Então o roteiro diz ao espectador: “Preste atenção em quem você está vendo, com quem está rindo. Eles são torturadores”. Isso desperta contradições éticas, morais, filosóficas, emocionais.
O filme nos provoca neste sentido: não sabemos muito bem o que pensar, porque o roteiro não defende uma causa em detrimento de outra. Para os atores, foi uma experiência complexa, porque eles foram vítimas da ditadura, e sofreram tortura. Enquanto atores, tinham a tarefa fascinante de interpretar o outro lado da trama, ao invés de assumirem a postura das vítimas. Muitos deles tomaram a iniciativa, por conta própria, de conversar com psiquiatras e psicanalistas, para um laboratório pessoal a respeito do tema. Por isso o resultado tem esse aspecto autêntico.
Este é um dos aspectos mais interessantes da história: o estudo da humanidade do mal. Através de estudos, os psiquiatras constataram que os torturadores eram pessoas perfeitamente normais.
Fico encantado com a questão do ponto de vista. O olhar não se cola aos generais e coronéis, mas aos funcionários da prisão, com destaque para Navarrete.
Às vezes as pessoas me perguntam: “Quem é o personagem principal de Prisão nos Andes?”, e eu costumo responder que é Navarrete. Já me disseram que eu estava enganado, e eu respondi: “Mas eu sou o diretor do filme!”. Acho engraçada essa ambiguidade. Não penso em quanto tempo cada um tem de tela, mas no fato que Navarrete é aquele que recebe o legado da violência da ditadura. Ao mesmo tempo, é um anônimo. Ele convive com estes militares condenados a 800 anos, mas também passeia pelo centro da cidade de Santiago, e não o reconhecemos. Ele tem toda essa vivência, mas não sabemos como isso vai se manifestar neste personagem num futuro, tanto coletivamente quanto em casa, com sua família, seus amigos, no trabalho.
As pessoas costumam dizer que seria impossível uma ditadura voltar a acontecer na América Latina, e quero acreditar que seja verdade. Mas não tenho certeza. Em vinte, trinta anos, muitas coisas malucas podem acontecer neste mundo polarizado. Veja o que ocorre hoje na Alemanha, na França, que são referências de uma democracia sólida. Agora, têm partidos de extrema-direita em altas posições de seus parlamentos. Navarrete dialoga com esta realidade, com uma monstruosidade que percorre as ruas, entre os cidadãos, nos bares e restaurantes.
Surpreende no filme a quantidade de humor, especialmente ligada ao absurdo.
É verdade. Nem todas as pessoas percebem isso, porque se trata de um humor bastante chileno. Percebi isso nos grandes festivais de cinema. As pessoas ficam intrigadas no início, diante destes velhinhos andando pra cá e pra lá, falando de música. Qual o interesse neles? Depois chegam as cenas absurdas e violentas. Esse humor é bastante chileno mesmo: se você caminhar pelas ruas de Santiago, vai encontrar uma hora de material digno de Beckett. Alguns acontecimentos são bizarros, e as pessoas nem sempre se entendem. As pessoas não sabem se podem confiar nos personagens, no que dizem, e nas próprias imagens. Por isso, o humor nasce da desconfiança.
Aqui, o medo vem da monstruosidade dos seres humanos. Prisão nos Andes pode ser considerado um filme de terror, indiretamente.
Ao mesmo tempo, existem cenas de terror. O filme envereda em aspectos sangrentos do cinema de gênero.
Eu me interesso tanto pela comédia quanto pelo cinema de terror. E penso em todos os tipos de terror, o que inclui o cinema B, pelo nível da fotografia, e pelo carrinho de brinquedo que atravessa os enquadramentos, mas ninguém sabe quem o controla. Até parece um filme dos anos 1980, com inspiração próxima de John Carpenter. Mas é um terror que surge aos poucos. O medo pode decorrer do sobrenatural, ou da natureza. Aqui, ele vem do humano, da monstruosidade dos seres humanos. Prisão nos Andes pode ser considerado um filme de terror, indiretamente. Os festivais de cinema têm muita dificuldade em classificá-lo, entre drama, suspense, biografia inspirada em fatos, e terror. Gosto que todos os gêneros se cruzem, e que ele não possa ser definido com tanta facilidade.
O roteiro também lida muito bem com a crise da masculinidade, e a necessidade destes homens em se provarem fortes o tempo inteiro.
Sem dúvida. Acredito que aparecem apenas três mulheres nesta história, rapidamente, e correspondem a arquétipos da feminilidade, como a bailarina. Não existe espaço neste contexto para o feminino e a feminilidade. Sobre uma masculinidade “pura”, brutal dos militares. Uma das referências para nós era Bom Trabalho (1999), de Claire Denis, que filma a Legião Estrangeira. Ao mesmo tempo em que impera a masculinidade, existe este culto ao corpo, à forma física em detrimento do intelecto. Tem esse aspecto meio Leni Riefenstahl, de como filmar a grandiosidade dos corpos. Sempre me perguntam sobre a relação gay entre Navarrete e outro vigia. Mas esta não é uma história de amor. É apenas o sintoma de uma sexualidade reprimida neste espaço, que precisa ser canalizada de alguma maneira.
Uma das referências para nós era Bom Trabalho. Ao mesmo tempo em que impera a masculinidade, existe este culto ao corpo, à forma física em detrimento do intelecto.
Você opta por uma estética elegante, em scope, ao invés de filmar estes homens por uma linguagem que sugira algo grosseiro, violento. Por que tamanha polidez?
Tive muito cuidado a esse respeito no trabalho junto ao Mauro Veloso, diretor de fotografia. Pensamos em cada composição. Optamos pela câmera mais distante, na condição de testemunha. Por isso evitamos os planos próximos demais. Na cena do assassinato, resolvemos a ação em um plano fixo durante cinco minutos. De outra forma, eu teria apelado às emoções, e não queria isso. Essa distância aumenta a impressão de algo elegante, como você diz, mas também me permite me colocar mais próximo do olhar do espectador, ao invés de me tornar um diretor controlador. Não quero dizer ao espectador: “Olhe aqui! Agora olhe aqui!”. Preferimos a câmera distante, tranquila e paciente.
Acredita que todos os espectadores possam se projetar com facilidade neste contexto específico da ditadura?
Sem dúvida nenhuma. É uma história de fácil identificação na América Latina, mas também passamos por festivais na Índia, por exemplo. Fiquei surpreso que tenham compreendido tão bem por lá, como se, quanto mais distantes, mais imediata fosse a adesão. No próprio Chile, talvez não tenham entendido tão bem assim. As pessoas me diziam: “Mas não foi exatamente assim”, “Faltou incluir o elemento X”. Cada um tem um filme em sua cabeça a respeito deste episódio da nossa história, porque ele ainda está próximo demais de nós. Mas na Índia, compreendiam o contexto geral. Em Biarritz, São Paulo e Rio de Janeiro, sinto que entenderam muito bem o peso da história.