O diretor Luc Besson parte de múltiplas ambições e focos com este projeto. Ele trabalha a partir de um roteiro tão inchado, disperso e improvável que aparenta ter sido escrito e reescrito a dezenas de mãos — exceto pelo fato que o único autor foi o próprio cineasta. Em menos de duas horas, combina a comédia, a fábula infantil, do filme de gângsteres, o drama queer, e a história de superação de um sujeito com deficiência que, por acaso, cuida sozinho de centenas de cachorros.
O francês, acusado com frequência de filmar somente belas loiras, muitas delas com passado de modelos, agora se abre à alteridade — ou, pelo menos, à sua versão do termo. O protagonista é um sujeito de orientação sexual e identidade de gênero indefinidas, que nunca teve uma relação sexual, nem manifesta desejo por alguma pessoa em especial. Sabemos, em contrapartida, que gosta de se vestir de mulher, e participa de shows de drag queens.
Ele também perdeu o movimento das pernas, embora consiga ficar de pé durante poucos minutos (algo que, como se pode imaginar, lhe será muito útil adiante). Uma figura efeminada, com deficiência, cercada por uma psiquiatra negra e por mafiosos latinos. A diferença interessa a Besson contato que enxergada por este prisma do exotismo, do fetiche do submundo. Estes segmentos sociais podem se tornar protagonistas, contanto que levem vidas estranhas, marginais, perigosas, performáticas.
Douglas é trabalhado de fora para dentro, pela imagem curiosa de um sujeito vestido de Marilyn Monroe, numa cadeira de rodas, com uma arma na mão e centenas de cachorros ao redor. Ora, as melhores construções vêm de dentro para fora.
No caso, Douglas Munrow (Caleb Landry Jones) é uma vítima. Cresce em um lar profundamente agressivo, por um pai que o tortura pelo simples prazer de fazê-lo. Clemens Schick recebe o papel ingrato de representar o mal, o sujeito sem qualidades, cuja perversidade serve a ressaltar, por contraste, a pureza do filho. Os flashbacks dessaturados da infância constituem um show de horrores, em todos os sentidos da expressão: violentos, caricatos, exageradíssimos. Besson demonstra prazer notável em maltratar o menino, como se isso pudesse embasar suas ações posteriores.
De fato, parte considerável do roteiro de Dogman se atém à explicação de dois elementos centrais na composição do protagonista: a paixão pelos cachorros e a feminilidade. Cena após cena, o texto traça um plano insistente, de viés determinista, para justificar o porquê do abrigo com centenas de cachorros, o motivo de Douglas gostar do palco, das figuras femininas, da música antiga, da maquiagem, dos vestidos. Dificilmente se reclamará que o comportamento do herói soa abrupto. Pelo contrário, pode-se queixar de ser explicado em excesso.
O autor aparenta estimar que, ao se cercar de todos os símbolos e defesas necessárias, não poderá ser questionado pelo conjunto de excentricidades. Ora, convém separar, neste quesito, o trabalho dos atores e aquele da própria direção e montagem. Por um lado, Caleb Landry Jones está de fato excelente no papel. Acostumado aos tipos estranhos no cinema, o ator confere humanidade ao tipo martirizado.
As conversas com a psiquiatra Evelyn (Jojo T. Gibbs, nome em ascensão em Hollywood) constituem pontos fortes, porque permitem aos atores apenas trabalharem a voz e as expressões, longe das roupas extravagantes, dos cenários improváveis, da multidão de cães correndo em câmera lenta. As apresentações de Douglas no palco, vestido de Edith Piaf ou outras divas, também demonstram o comprometimento do ator e a capacidade de Besson em contemplar atuações quando deseja fazê-lo. Havia um pequeno filme camp de grande potencial nesta iniciativa, porém soterrado por meia dúzia de subtramas correndo em paralelo.
No entanto, o caráter intervencionista não tarda a dominar a mise en scène. O francês sempre possuiu uma mão pesadíssima para construir universos e atmosferas. Aqui, ele hesita entre levar esta trajetória a sério ou considerá-la um conto lúdico; entre fazer rir ou despertar medo, entre criar revanches contra bandidos dignas de Esqueceram de Mim ou de Operação Invasão. O filme passa sua duração inteira buscando um tom, um único caminho, embora a montagem de Julian Rey prefira bifurcar os sentidos sempre que possível. A dispersão se torna uma finalidade.
Logo, nenhuma sequência soa problemática em si, apenas desconectada do restante da narrativa. Em outras palavras, as cenas não parecem pertencer ao mesmo filme. A passagem com cachorros roubando joias e ajudando o homem com deficiência a preparar um bolo diferem muito do drama de interrogatório na prisão. A paixão por teatro e por uma atriz mais velha se opõe à subtrama do marido violento da psiquiatra — algo esquecido adiante. Combinam-se forçosamente os imaginários de Cinderela, O Silêncio dos Inocentes, 101 Dálmatas e Priscilla, a Rainha do Deserto.
No final, os homens se revelam obsessivos e perseguidores; enquanto cabe às mulheres fugir destas presenças desequilibradas. O ponto de vista de Besson oscila entre a compaixão tipicamente cristã (a infância) e paternalista (as cenas de Douglas arrumando as pernas para dormir) com o fetiche pelo mundo cão, sem falso trocadilho. O herói declara seu afeto por Evelyn, visto que ambos “conhecem a dor”, deixando a impressão de que o cineasta consente em voltar o olhar a ambos contanto que venham de um lugar de sofrimento.
Confunde-se, uma vez mais, trauma com complexidade psicológica, algo típico das fábulas da Disney, cheias de órfãs sentimentais. A relação do “homem cão” com a religião cristã que tanto o oprimiu; com a homossexualidade e o travestimento, e com os próprios cães, segue um tanto opaca. Isso ocorre apesar das múltiplas justificativas da ordem de causa de consequência (ele encontrou uma revista feminina no cativeiro, logo, nutriu afeto por mulheres).
Douglas é trabalhado de fora para dentro, ou seja, ele constitui, em primeiro lugar, a imagem curiosa de um sujeito vestido de Marilyn Monroe, numa cadeira de rodas, com uma arma na mão e centenas de cachorros ao redor. A partir disso, Besson tenta encontrar elementos que forneçam um estofo ao personagem. Ora, as melhores construções vêm de dentro para fora: depois de entender a psicologia, pensa-se no figurino, nos acessórios, na casa onde vive.
No teatro de fantoches de Besson, os verdadeiros protagonistas serão as cores, as ilusões, os tiques e truques. Caberá aos seres humanos (e aos animais, no caso) lutarem pela atenção do cineasta/dono, obcecado por tudo o que brilha, no intuito se imporem em meio aos cenários, ao figurino, à maquiagem, à música. O que resiste de pura humanidade parece subsistir no filme apesar do cineasta, e não graças a ele.