Yannis (Vangelis Mourikis) é chamado pela polícia. Houve um acidente, e ele precisa reconhecer um corpo. No drama grego Arcadia, enquanto acompanhamos a dor deste homem, nem imaginamos inicialmente que diversas pessoas ao redor deste médico já estão mortas.
Isso porque, na concepção do diretor Yorgos Zois, não há diferença entre humanos e fantasmas. Eles possuem a mesma aparência e habitam os mesmos lugares, com a exceção de um detalhe importante: os falecidos não conseguem retirar seus sapatos, que os prendem à Terra. Enquanto o ente querido não os deixar partir de fato, permanecem presos, sonhando com a libertação. Neste projeto, são os vivos que assombram os mortos, não o contrário.
Arcadia tem sua primeira exibição no 74º Festival de Cinema de Berlim, dentro da seção Encontros, destinada a narrativas ousadas e temas provocadores. Em entrevista ao Meio Amargo, o cineasta explica a origem desta curiosa mitologia, sua relação com as religiões convencionais e a maneira como dirigiu os atores — tanto aqueles que interpretam os vivos, quanto os que encarnam os mortos.
No filme, os vivos não enxergam os mortos ao redor, mas o espectador pode ver os dois — mesmo que não consiga distingui-los a princípio. Por quê?
Como diretor, queria conduzir os espectadores através desta terra de ninguém, onde a vida e a vida-após-a-morte se situam na mesma dimensão. Este era o aspecto mais importante do filme para mim: o espaço após-a-vida fica na Terra, não em outro universo, nem em um mundo invertido como em Stranger Things. Todos estão na Terra, juntos, sob o sol. Por isso, era importante o espectador ter essa experiência e, no começo, não saber quem está vivo e quem está morto. Afinal, nosso olhar está treinado para supor que todas as pessoas que enxergamos estão vivas. Mas o cinema é capaz de fazer isso: oferecer um ângulo pelo qual nunca vimos a realidade antes. Você joga luz sobre esta perspectiva, e de repente, ela ilumina todo o resto.
Imagino que, por isso, tenha escolhido não criar nenhuma diferença estética entre os vivos e os mortos.
Sem dúvida. Essa decisão surgiu desde o início. Não queria ter qualquer distinção através da maquiagem, de efeitos visuais, nem usar fade in e fade out. Eles são exatamente como nós, uma outra pessoa sentada ao nosso lado, por exemplo. Nós não podemos vê-los, mas eles nos veem, é claro. Eles inclusive podem conversar uns com os outros. Mas estão presos na Terra, e aí surge o verdadeiro conflito. Os mortos são nossos reféns. Os fantasmas nesta trama estão mais vivos do que os vivos, porque têm a motivação de fugir, e fazer algo. Já os vivos estão tristes, e são incapazes de seguir em frente, porque têm assuntos inacabados com os mortos.
Você também atribui um componente sexual muito forte aos mortos, que se comunicam através do sexo.
Você menciona esta teoria de que os mortos estão fazendo sexo uns com os outros, mas para mim, no filme, eles fazem isso para resgatar as memórias que perderam. É comum chamar o orgasmo de “pequena morte”, porque temos uma experiência extracorpórea, e mal podemos nos lembrar do mundo ao redor enquanto ela acontece. Para os fantasmas, o oposto ocorre: durante o orgasmo, eles têm este breve instante de conexão com a vida, e lá, conseguem captar uma memória perdida. Na mitologia fantasma proposta em Arcadia, os mortos se lembram apenas daquilo que os vivos também se lembram. Gosto muito disso, porque torna ainda mais clara a condição de estarem presos, e condicionados aos seus vivos.
Como trabalhou com seus atores para interpretarem estes papéis tão particulares?
A direção foi exatamente a mesma para todos no elenco. Eu dizia: “Não interpretem fantasmas”. Muitos deles tentavam criar uma atmosfera fantasmagórica, mas eu pedi para pararem com isso. Os fantasmas precisavam ser exatamente como pessoas comuns, e ainda mais focados. Então pedi que interpretassem os personagens como se estivessem no cativeiro. Por isso, eles eram obrigados a seguir seus sequestradores. Nunca quis que entrassem num “estado de espírito” de pessoas mortas, nada disso. Estes fantasmas têm sangue correndo nas veias, iguais aos vivos. Por isso, todos atuam de maneira semelhante, e temos tanta dificuldade de separá-los a princípio. Vemos, por exemplo, que uns não falam com os outros, mas pensamos de início que talvez estejam brigados, se ignorando.
Este é um filme sobre fantasmas e espíritos, mas nunca soa como um filme espiritual, muito menos religioso.
As religiões tentam oferecer chaves sobre como compreender o mundo, mas neste filme, eu ofereço minha própria perspectiva, meu conhecimento, minha chave de leitura. Não tenho muito interesse no que as religiões dizem a respeito da vida após a morte. Algumas delas me cansam muito, na verdade — não falo na crença em Deus, mas em certos dogmas, porque ali deixam claro que apenas procuram novos clientes para seus templos. Para mim, é uma questão de assombrar ou ser assombrado. Quando você se sente assombrado por alguém, vivo ou morto, você continua seguindo esta pessoa, e a carrega consigo.
Eu me lembro de uma grande ruptura amorosa que tive, e que serviu como ponto de partida para o roteiro. No primeiro dia depois de terminar, você ainda carrega a pessoa amada com você por todos os lados. Você ainda faz duas xícaras de café. De noite, você se vira para abraçar o outro lado da cama, ou fala com esta pessoa enquanto está cozinhando. Você ainda se comunica com ela, mesmo que esteja ausente. Algo semelhante ocorre com os mortos. Por isso, acredito que seja um filme universal, sem relação com as religiões.
Este é um belo filme de fantasia, no qual a magia não rompe com o realismo. Como enxerga Arcadia na perspectiva do cinema de gênero?
Acredito que os melhores filmes, e os mais duradouros, sejam aqueles impossíveis de categorizar. Estou ansioso para que os críticos e espectadores me digam em quais rótulos eles encaixam o filme, mas eu mesmo não poderia fazer essa classificação. Talvez alguns digam que se trata de uma realidade expandida, mas prefiro não participar deste processo. Em todos os meus filmes, gosto de explorar a terra de ninguém entre realidade e ficção. Neste caso, seria entre a vida e o espaço após a vida. Por isso prefiro nem lançar minhas próprias categorias. É melhor deixar as coisas assim.
Os símbolos desta trama são muito concretos. Os mortos não podem tirar os sapatos; as almas se encontram num bar comum, que dá título ao filme.
Os sapatos são um símbolo muito poderoso, porque dizem bastante sobre a nossa personalidade. Sempre fiquei impressionado com as imagens de pares de sapato abandonados na beira das ruas, quando estão velhos, ou jogados nos fios de eletricidade. Esta imagem sempre me assombrou, porque indica que faltava um corpo ali. Alguém havia partido. Há uma sensação de abandono nos sapatos deixados para trás. Estes dias, tirei uma fotografia perto da minha casa, e considero esta construção bastante potente.
Por isso, gostava da ideia de que os fantasmas pudessem fazer tudo: eles podem comer, podem beber, podem fazer sexo, mas não conseguem tirar os sapatos. Este é o elemento que os mantêm presos à Terra. Quando um fantasma consegue se libertar, seja porque seu vivo morreu, ou porque concluiu as pendências com os mortos, os sapatos são deixados para trás. Para mim, esta era uma maneira poética, mas também realista, de manter o fantasma preso à Terra.
Arcadia me lembrou bastante o cinema japonês, pela naturalidade com que lida com a morte. Você nunca observa estas pessoas com piedade ou condescendência. A morte soa como uma condição bastante natural, avessa ao espetáculo.
Fico contente que diga isso. Eu quero muito ver que tipo de reações o filme vai despertar na Ásia, porque me lembro de Tio Boonmee que Pode Recordar suas Vidas Passadas (2010), do Apichatpong Weerasethakul. Eu assisti a este filme depois de ter terminado o meu. Tem uma frase assim: “Os fantasmas não estão presos aos lugares, mas às pessoas”. Achei isso maravilhoso, era praticamente a mensagem do meu filme; a mesma filosofia. Conheço algumas pessoas asiáticas que já me disseram: “Minha tia morreu faz uma semana, mas ela ainda está aqui pela casa”. Mesmo na Grécia, em igrejas ortodoxas, depois de quarenta dias, voltamos para cumprimentar os mortos, porque se acredita que eles perambulam pela Terra neste período inicial de morte. De certo modo, esta mentalidade de ter os mortos perto de nós está mais próxima das filosofias orientais do que ocidentais.