Sex (2024)

A tragicomédia da intimidade

título original (ano)
Sex (2024)
país
Noruega
gênero
Comédia, Drama
duração
125 minutos
direção
Dag Johan Haugerud
elenco
Jan Gunnar Røise, Thorbjørn Harr, Siri Forberg, Birgitte Larsen
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Um limpador de chaminés (Jan Gunnar Røise) fez sexo com um homem. O sujeito casado, com filhos, que se considera heterossexual, teve um encontro inesperado com um cliente. Assim, experimentou pela primeira vez ser penetrado. Achou estranho, mas “fascinante”. Mesmo assim, não pretende repetir a dose. Em seguida, ele narra o episódio ao melhor amigo (Thorbjørn Harr) e à própria esposa (Siri Forberg), como quem relata um dia comum no trabalho. Ambos ficam horrorizados. Mas então você é gay? Então não me ama mais? Estava descontente em casa?

Sex move uma narrativa inteira a partir deste único episódio, narrado desde a primeira cena, porém jamais apresentado em imagens ao espectador. Em se tratando de expectativas a respeito do prazer alheio, o diretor Dag Johan Haugerud prefere deixar que o público imagine o que realmente ocorreu naquela tarde, a partir das descrições detalhadas do protagonista, e dos questionamentos efetuados por terceiros. A relação erótica da espectatorialidade começa no instante em que somos convidados a imaginar uma interação sexual abrupta entre dois homens adultos. Como nos sentimos a respeito? Incomodados? Chocados? Excitados?

Sex parte do sexo casual entre dois homens para desmembrar um sem-número de tabus e questões ligadas a gênero, sexualidade, matrimônio, monogamia, fidelidade, etc.

Na sala de cinema, muitas pessoas riam. Parte deste humor decorre de piadas explícitas do roteiro, sobretudo conectadas à religião (“Você tem a memória de ser penetrado. Guarde isso no seu coração, assim como guarda a Virgem Maria”). No entanto, outra parte deriva de nosso incômodo em abordar o assunto. O longa-metragem norueguês trabalha diretamente com a dificuldade de debater a intimidade sem julgamentos morais. Por que seria tão difícil, entre maridos e esposas, discutir masturbação, sexo, desejo?

É importante que a narrativa se concentre em dois homens de meia-idade, com profissões rotineiras (o limpador de chaminé e seu patrão), desprovidos de qualidades excepcionais. Assim, o cineasta evita relações deterministas: eles não agem desta maneira porque são particularmente belos, porque têm uma libido incontrolável, porque possuem algum trauma na juventude. Ao escolher dois protótipos do homem comum (nenhum personagem possui nome, vale ressaltar), o autor permite nossa identificação com eles em sua humanidade, sem tentar explicá-los. Fazem sexo e agem de tal modo porque assim o desejam.

Os autores encaram o desafio de sustentar duas horas de trama a partir quase exclusivamente de conversas. Trata-se de duplas ou trios sentados à mesa de jantar, ou no quarto, discutindo o impacto da infidelidade inicial. O resultado poderia se tornar enfadonho caso a montagem não tivesse um controle precioso de ritmo, e a direção de fotografia não compusesse planos de tamanho interesse estético. Após cada embate denso entre marido e esposa, ou filho e pai, a câmera observa as fachadas de prédios idênticos pela cidade, sugerindo que existem outros como eles por aí, nos imóveis ao lado. Ao invés de pessoas específicas, com histórias únicas, tornam-se exemplos de comportamentos que ultrapassam suas individualidades.

Além disso, o trabalho com planos fixos e a janela em scope se mostra uma ferramenta preciosa. O formato mais retangular deixa grandes espaços vazios ao lado dos protagonistas, ilustrando um desajuste, ou o sentimento de falta. Enquanto isso, leves aproximações rumo aos personagens, ou guinadas sutis de perspectiva dentro do plano (com panorâmicas e tilts) fazem com que o público enxergue novos personagens ou elementos no espaço ao lado. Sublinha-se o fato que nunca teremos um quadro completo dos pontos de vista e dos fatos — estamos presos à subjetividade de uma pessoa, sempre completada ou modificada pela fala de terceiros.

Sex parte do episódio casual entre dois homens para desmembrar um sem-número de tabus e questões ligadas a gênero, sexualidade, matrimônio, monogamia, fidelidade, etc. A cada vez que o episódio é recontado, ele adquire nuances, tal qual um telefone sem fio. Inicialmente, ganha o relato banal do herói, depois, a perspectiva católica do melhor amigo, então, a perspectiva íntima da esposa (“Essa história também é minha”, ela reclama), e a opinião bastante progressista da esposa do melhor amigo (Birgitte Larsen), que começa a levantar possibilidades de transexualidade do esposo.

A narrativa também encontra sequências preciosas junto ao filho adolescente, representando a geração da Internet, cheia de informações pela metade; porém mais aberta em revelar seus sentimentos. Em paralelo, o encontro hilário com uma médica gera o ápice do desconforto cômico, quando se compartilham informações íntimas demais durante uma consulta médica que se esperava profissional. Haugerud sabe como expandir o conceito de modo orgânico, confrontando os protagonistas a olhares diferentes sem introduzir conflitos externos à trama.

O longa-metragem constrói sua ironia fina entre as dimensões do público e do privado, do confessional e do secreto. Se não considero o sexo algo errado, então porque deveria escondê-lo? Por que não compartilhar relatos de masturbação com meus amigos, que provavelmente fazem o mesmo? A intimidade é escancarada enquanto se respeitam as dores e traumas dos personagens, despertados pelo caso vivido por um único homem. Basta uma tarde inconsequente para que os pilares da sociedade tradicional entrem em curto-circuito: a família patriarcal, a monogamia, a privacidade, etc.

Os criadores embalam discussões complexas numa estética agradável, de cores pastéis e trilha sonora alegre — algo que acentua o caráter humorístico, pelo contraste com a crise pessoal dos protagonistas. Os atores se dedicam aos papéis com a seriedade de um drama: eles nunca sublinham as ironias, deixando que o universo ao redor se encarregue de escancarar o absurdo das situações. Para o quarteto, o episódio de traição constitui um motivo real para repensarem seus rumos afetivos. 

A narrativa se completa com o momento em que os personagens podem literalmente se enxergar uns nos outros. Durante uma apresentação, o chefe dança em frente aos amigos, numa performance desconstruída, feminina, sensual. A câmera tenta olhar para todos os lugares ao mesmo tempo: o palco e a coxia; o chão e o reflexo do teto; a expressão dos dançarinos e aquela do público. Completa-se assim a vontade de horizontalidade e representatividade, permitindo que os olhos literalmente se encontrem. Trata-se de uma metáfora simples e eficaz do princípio de empatia praticado pela obra na sua totalidade.

Sex (2024)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.