Os documentários dirigidos por Susanna Lira se separam em grupos muito diferentes. Existem os filmes feitos a partir de personalidades em vida, e aqueles realizados postumamente. Alguns são projetos elaborados com os biografados (Adriano Imperador, Casão, Num Jogo Sem Regras, A Mãe de Todas as Lutas), enquanto outros são efetuados a partir dos biografados (Clara Estrela, Mussum, um Filme do Cacildis).
Em alguns casos, ela possui diversas imagens à disposição para trabalhar, montar, dialogar. Em outros casos, precisa trabalhar a partir da ausência de registros — caso do recente Nada Sobre Meu Pai. Às vezes, parte de projetos pessoais e independentes, em contraste com encomendas de grandes serviços de streaming. Tamanha diversidade no interior de uma única linguagem — o documentário de viés biográfico — comprova a necessidade de se adaptar e explorar a riqueza de possibilidades estéticas que o cinema permite.
Talvez o ápice desta longa pesquisa de linguagens resida em Fernanda Young: Foge-me ao Controle. O longa-metragem resgata a memória, mas principalmente, o fluxo de pensamento único da escritora falecida em 2019. Lira não dispõe, portanto, da autora para conversar, porém, encontra em mãos uma quantidade impressionante de imagens e textos com os quais trabalhar.
O filme jamais explica Fernanda Young, nem a resume. O principal achado reside no diálogo frequente com o cinema mudo.
Young se retratou e foi retratada em entrevistas, livros, desenhos, cartas, conversas com amigos, vídeos pessoais de viagens. Expôs seu corpo, suas opiniões políticas mais sinceras, sua sexualidade, sua percepção do meio literário enquanto universo machista e segregacionista. Discutiu drogas, aborto, maternidade, o estupro sofrido na adolescência. Não haveria porque conservar tabus ou apresentar pudores diante de uma mulher que não os tinha. Honrar a protagonista equivale a tocar nestes temas com semelhante frontalidade.
Para uma mulher radical, acelerada, de “raciocínio labiríntico”, em suas palavras, apresenta-se um filme à altura. Lira compreende que a autora jamais poderia ser representada pelo formato cansativo dos talking heads elogiosos. Não se trata de homenageá-la enquanto escritora maravilhosa, mãe perfeita, parceira fiel, comentarista sagaz de um Brasil em transformação. A cineasta certamente admira a sua personagem, porém evita a estrutura do cinema-Wikipédia que listaria obras e elencaria conquistas (ou decepções).
A montagem de Ítalo Rocha jamais explica Fernanda Young, nem a resume. Prefere jogar com ela, compreendendo que sua forma de se posicionar no mundo constituía uma linguagem em si própria. Sua existência, sua forma de falar, as cores do cabelo e os textos despudorados afrontavam uma percepção específica da qualidade e dos bons modos. Por isso, o documentário alterna os registros mais díspares, dos oficiais aos amadores, dos públicos aos íntimos. Começa com as reclamações durante uma viagem internacional, e inclui as confissões do abuso sexual e as ponderações a respeito das “maravilhas da maternidade”.
A heroína possuía uma consciência feroz de sua existência. Compreendia exatamente os motivos pelos quais nunca obteve tanto respeito enquanto escritora: não possuía “aparência de intelectual”, não utilizava as palavras típicas do jargão erudito, além de ser mulher, de escrever para a televisão. Mesmo assim, definia-se sobretudo por esta profissão, ao invés de roteirista, comentarista, jornalista. O filme, em respeito à autopercepção de Young, valoriza seus escritos, transformados em fio-condutor da experiência.
No entanto, Lira o faz por meio de colagens, sobreposições, fricções, intervenções. Manipula imagens e sons com a liberdade de uma cineasta anárquica, como quem equilibra inúmeros temas, texturas e vontades ao mesmo tempo — assim como Young o fazia. Conversas se somam a imagens do espaço sideral; um depoimento simples é colocado no meio da tela preta, com uma faixa vermelha atravessando o enquadramento. A atriz Maria Ribeiro lê trechos das obras enquanto performances da autora e suas atividades caseiras se desenvolvem em segundo plano.
Talvez o principal achado do longa-metragem resida no diálogo frequente com o cinema mudo. A diretora busca imagens capazes de representar o corpo feminino contra o patriarcado, além de uma gestualidade acentuada e pouco convencional. Encontra ecos nos filmes de cem anos atrás, que dificilmente seriam associados de imediato à trajetória da artista. O aspecto lúdico destas fantasias, a ferocidade das personagens mudas e o contraste do branco e do preto acentuados dialogam muitíssimo bem com o estilo de Young.
A fantasia se torna uma forma de atenuar a brutalidade da poesia autobiográfica. As ferramentas de uma estética experimental, dadaísta, numa espécie de retro-modernismo, também dialogam de maneira potente com a mulher que viveu os tempos de MTV, de Os Normais, e de outros formatos fundamentais em sua época, porém abandonados na geração das redes sociais. Foi a mulher moderna de um tempo que não existe mais, a pioneira de uma forma de humor e de performance tão rapidamente ressignificados no império da autoimagem caseira.
Fernanda Young: Foge-me ao Controle permite que as neuroses, a dislexia e a filosofia de Young se condensem numa cacofonia surpreendentemente coesa. Lira consegue expor sua personagem sem a vontade de chocar ou de fazer justiça (ou seja, de lhe reclamar o status que seria devido), enquanto evita com igual destreza a mera contemplação apolítica e comportada do furacão representado pela escritora. Assim, não se sobrepõe a ela, de maneira controladora, nem se torna refém da força da personagem.
A diretora multiplica seus recursos, embaralha as peças, acelera a lógica. Assim, oferece uma obra que, pelo simples encadeamento de imagens e sons, ilustra a subjetividade da protagonista. Não seria esta, no fim, a melhor homenagem de todas? Aquela que compreende a pessoa para além dos seus feitos, dos seus fatos e dados, mas enquanto forma de estar no mundo? Lira dança a coreografia única traçada por Young, que vai do indie à Roberta Miranda; da poesia à crônica política, da afirmação de si à análise do outro. Trata-se de um espetáculo farto, assumidamente saturado, múltiplo — tão disperso quanto agregador.