Quatro jovens, acostumados a praticar pequenos golpes para sobreviver, acabam se metendo com a carga de um bandido perigoso. Para quitarem sua dívida, decidem assaltar um banco. A premissa de Passagrana parece comum até demais no cinema de ação — algo que os próprios protagonistas reconhecem. Deveriam montar um plano elaborado, nos moldes de Onze Homens e um Segredo? “Isso só funciona nos filmes”, refletem. Afinal, de onde tirariam a equipe altamente qualificada para atuar no golpe?
A palavra atuar surge como uma solução possível quando Zóinhu (Wesley Guimarães) escolhe treinar um grupo de atores para acreditarem que estão assaltando um banco num projeto fictício, sem saberem que a ação ocorre de verdade. Alguns aspectos desta iniciativa soam absurdos demais: a ideia nasce de um livro sobre Stanislavski, roubado por profissionais que jamais furtariam tal objeto, e lido em segundos. A disposição dos participantes a participar desta farsa sem negociar salários, datas, nem assinar contratos, também incomoda. A predisposição ao jogo aproxima o filme da fábula.
No entanto, para os demais aspectos “cinematográficos” da empreitada, o caso encontra soluções tão simples quanto funcionais em um longa-metragem de orçamento modesto. As câmeras de segurança seriam as únicas a filmar os invasores-atores, e o som também viria destes aparelhos. Nenhuma luz artificial seria empregada no projeto, e nenhuma equipe estaria presente, porque “precisa ser o mais real possível”. Alguns criadores de fato apostam em concepções idealistas do gênero, de modo que o dispositivo se justifica, contanto que se aceite a generosa liberdade em relação aos fatos. (Pelo menos, o longa-metragem se resolve de maneira muito mais satisfatória, na ótica do falso filme, do que Entrando Numa Roubada, que partia de premissa praticamente idêntica).
O elenco impressiona. O conceito de personagens-interpretando-personagens permite aos atores se divertirem bastante em cena. No entanto, nenhum filme brasileiro poderia ter tamanha ingenuidade em relação às representações raciais em pleno ano de 2024.
O elenco impressiona. Os quatro protagonistas estão uniformemente bem dirigidos, com notável desenvoltura e entrosamento. Wesley Guimarães transita com naturalidade entre o pequeno ladrão, o falso diretor e o cérebro da gangue, evitando os estereótipos associados aos cargos de liderança. Juan Queiroz, ator em rápida ascensão no cinema e na televisão, demonstra preciosa versatilidade em suas composições. Wenry Bueno soa como o tipo de intérprete capaz de habitar qualquer cena física com uma espontaneidade ímpar, enquanto Elzio Vieira serve de contraponto desafetado a este último.
O conceito de personagens-interpretando-personagens permite aos atores se divertirem bastante em cena, algo que se estende aos coadjuvantes. A ideia de Irene Ravache assaltando bancos provoca humor pela surpresa da escalação, assim como Carol Castro interpretando a si mesma, numa entrega melodramática adequada ao tom humorístico. Apesar de pouquíssimo tempo de tela, Luciana Paes está hilária, confirmando a nossa a tese de que qualquer filme brasileiro se torna melhor com a sua presença. Já Caco Ciocler escapa à armadilha do vilão histriônico, atenuando o tom de voz enquanto carrega os olhos de furor (algo importante para um ator escalado cada vez mais para os tipos detestáveis e caricaturais). Poucas produções comerciais seriam tão merecedoras de um prêmio de melhor elenco quanto esta aqui.
Enquanto isso, Passagrana retira do assalto seu debate moral. Os protagonistas escapam a dois polos perigosos neste tipo de narrativas: eles não constituem nem os paladinos da justiça contra um sistema explorador; nem figuras perversas, de má índole. Ninguém rouba para quitar empréstimos, pagar o aluguel ou ajudar um parente hospitalizado — aliás, familiares e demais membros da comunidade próxima inexistem. Assim, paira um sentimento de eterno presente. Rouba-se para ter dinheiro agora e entregá-lo ao bandido poderoso, sem visar ganhos num futuro próximo. Eles não desejam comprar tênis, carro, motocicleta. Ao retirar tais elementos de jogo, o roteiro se exime de julgamentos ao ato de roubar.
Apesar de tantas qualidades, alguns facilitadores ou simplificadores comprometem o resultado. O filme decide transformar Zóinhu num herói disposto a sacrificar a vida pelos colegas que dançam num bar logo ao lado, enquanto descobre o amor na figura de uma atriz (Giovanna Grigio). Obviamente, apenas o protagonista recebe o direito a um relacionamento, enquanto os demais são privados de tais encontros. Rumo ao desfecho, os planos do quarteto para enfrentar o adversário interpretado por Caco Ciocler se concretizam de maneira fácil até demais — mais um caso em que o aspecto fabular prevalece sobre o realismo social.
Em especial, nenhum filme brasileiro poderia ter tamanha ingenuidade em relação às representações raciais em pleno ano de 2024. Representar os garotos negros unicamente em atos de contravenção, frente aos atores burgueses brancos, e aos policiais brancos, deveria despertar o mínimo de questionamento por parte dos produtores — sobretudo, em se tratando de uma obra comandada por um homem branco, Ravel Cabral. Como dito acima, todos desempenham bem seus papéis. O problema diz respeito à necessidade evidente de perceber possibilidades de policiais negros, alunos de teatro negros, funcionários negros do banco, face a assaltantes brancos, por exemplo. Limitar a negritude à favela e ao roubo não é uma disposição aceitável.
Pelo menos, o aspecto farsesco dilui as tensões raciais e de classes, posto que todos os conflitos de Passagrana constituem uma mentira para os próprios personagens. A disposição a enganarem uns aos outros, e a benevolência em serem enganados, fazem do resultado um faz de conta, um jogo metalinguístico, ao invés de um comentário mais profundo acerca do Brasil e dos dispositivos de poder. Para cada metáfora menos inspirada (a bolinha é utilizada excessivamente), restam cenas divertidas, decorrentes do humor de situação, que faz rir pela simples existência das cenas (o teste de elenco, o ator improvisando durante o assalto). O saldo é bastante positivo.