Daughter’s Daughter (2024)

Famílias de mulheres

título original (ano)
女兒的女兒 (2024)
origem
Taiwan
gênero
Drama
duração
126 minutos
direção
Huang Xi
elenco
Sylvia Chang, Karena Lam, Alannah Ong, Winston Chao, Eugenie Liu, Tracy Chou
visto em
Festival de Toronto 2024

Daughter’s Daughter é um melodrama de intenso conteúdo emocional. A narrativa é atravessada por acidentes mortais, avós com demência, filhas abandonadas, gravidez na adolescência, embriões fertilizados, aborto e rejeição. A diretora taiwanesa Huang Xi garante que a meia dúzia de protagonistas femininas mantenha uma relação muito conflituosa com a filha, mãe ou irmã. Elas precisam resolver todas as suas pendências ao longo de três fragmentos temporais, quando estas mulheres afastadas se reúnem, contra a vontade, devido a uma tragédia.

A sobrecarga de temas pode despertar certa aparência de utilitarismo, como se Jin Aixia, Fan Zuer e Emma não fossem apenas personagens de países e gerações distintas, mas três representantes de importantes causas sociais que a cineasta deseja debater. Elas vivem somente em função da outra e do conflito que movimenta o longa-metragem: conhecemos pouco do trabalho, dos gostos, da rotina para além das cicatrizes familiares. A autora possui um foco específico nos sentimentos, e evita tergiversar. 

Felizmente, o drama evita a armadilha comum da manipulação emocional para fazer o espectador chorar, ou torcer por uma protagonista em detrimento da outra. Não há vilãs nem vítimas, apenas uma galeria de figuras machucadas por traumas, comportando-se de maneira irrefletida como forma de defesa ou autopreservação. É evidente o afeto de uma por outra. Ainda que existam motivos de sobra para chorar, há poucas lágrimas na trama. A autora deseja que o espectador elabore consigo mesmo tais emoções, ao invés de promover um expurgo durante a narrativa. Em outras palavras, a obra prefere desenvolver dilemas a resolvê-los.

Um drama eficaz na associação entre diferentes sensações de rejeição, o que inclui o abandono literal da bebê, a homofobia da mãe, e o luto, vivido enquanto afastamento e desamparo.

O ponto de vista pertence inicialmente a Jin Aixia (Sylvia Chang), mulher de meia-idade, tentando compreender tanto a mãe idosa, em perda de contato com a realidade, quanto a filha lésbica. Enquanto isso, evita falar sobre a primeira filha, Emma, fruto de uma gravidez na adolescência, e deixada aos cuidados de uma família de imigrantes nos Estados Unidos. Quando a filha Fan Zuer decide engravidar com a namorada, o ciclo de maternidades “não convencionais” — fora de núcleos patriarcais — suscita estímulos contraditórios nesta mãe. Aqui, nenhuma forma de afeto pode ser leve e descompromissada: é preciso que a alegria de uma (a chegada de um bebê) constitua a infelicidade da outra (por homofobia, ou medo de a filha não estar preparada para cuidar de um recém-nascido).

Daughter’s Daughter se desenvolve com uma elegância clássica, tão competente quanto pouco inventiva ou arriscada. Cada imagem é impecavelmente iluminada, em cenários bem decorados (restaurantes, apartamentos, casas noturnas). A direção de fotografia aposta em cores quentes, representando conforto, em oposição à escolha habitual dos dramas que mergulham personagens sofredoras num calvário de cores frias. O acolhimento começa pela própria estética, disposta a abraçar estas mulheres que não conseguem abraçar uma à outra. Tanto em Taiwan quanto em Nova York, onde se situa a maioria da história, cria-se um calor humano, junto à sensação de que aquelas vivências são comuns em meio a centenas de pessoas que cruzam os caminhos de Jin, Fan e Emma diariamente. O mundo é muito maior do que as heroínas.

Ao mesmo tempo, Huang Xi e o diretor de fotografia Yao Hung-i escolhem enquadrar principalmente os rostos, no centro exato do enquadramento. Quando duas pessoas conversam, a imagem se abre num plano de conjunto convencional, quando cada corpo se posiciona nos terços da imagem. Os raros movimentos de câmera servem a acompanham caminhadas de Jin Aixia, ou valorizar os vasos e decorações da casa, porém nunca chamam atenção a si mesmos. O drama dispensa vaidades de direção, ou uma linguagem provocadora, maliciosa. Prefere que este seja um “filme de personagens”, dedicado exclusivamente às falas e deslocamentos das figuras em cena.

Por isso, as atuações se tornam centrais, visto o tamanho da responsabilidade depositada nos ombros do elenco. Sylvia Chang demonstra grande habilidade ao introduzir um humor inesperado nesta mulher, fruto do desconforto em lidar com situações de intimidade. A atriz sabe pausar as falas, alternando contemplação com momentos de ataque direto ao texto. O confronto com Emma na cozinha de um restaurante norte-americano comprova o domínio da atriz, abraçando o clímax tipicamente lacrimoso com um comedimento exemplar — e por isso mesmo, muito mais comovente. Nada é mais emocionante do que ver personagens represando o choro de uma tristeza evidente, ao invés de exteriorizar cada dor experimentada.

Face à veterana, tanto Karena Lam quanto Eugenie Liu mostram-se afetadas, mais maneiristas nos gestos e na fala. Caso todas as atrizes se comportassem desta maneira, o conteúdo se aproximaria da comédia. No entanto, o aspecto de pudor e respeito da mãe equilibra a rebeldia um tanto adolescente destas jovens adultas, de modo que os excessos soam justificados. O projeto inteiro se organiza nesta balança delicada entre a utilização de símbolos evidentes (o cookie da filha morta, o recado deixado no apartamento ao final) e um controle rígido para atenuá-los em termos de função narrativa e valor sentimental.

Resta um drama sóbrio, e eficaz na associação entre diferentes sensações de rejeição, o que inclui abandono literal da bebê, a homofobia da mãe, e o luto, vivido enquanto afastamento e desamparo. Talvez o longa-metragem atingisse uma potência ainda maior caso introduzisse aspectos cotidianos destas mulheres, enxergando-as enquanto figuras tridimensionais, existentes para além do parêntese de uma crise profunda. Se Huang Xi não impressiona enquanto esteta, nem por oferecer algum ângulo novo na abordagem de seus temas, ela faz prova de tratamento respeitoso e preciso da direção de atrizes.

Daughter’s Daughter (2024)
6
Nota 6/10

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