Ramona (2023)

O cinema como terapia

título original (ano)
Ramona (2023)
país
República Dominicana
linguagem
Drama, Documentário
duração
81 minutos
direção
Victoria Linares Villegas
elenco
Camila Santana, Estrellita Ynoa, Yarisel Ynoa, Maite Ynoa, Lesly Aybar, Ashley Lara, Nicol Polanco, Yereini Santana, Martina Gómez, Rocio Pineda, Dariana Marte, Donaida Favian, Yikaurys Modesta, Yanibel Alcantara, Francia Reyes, Sherlyn Mota
visto em
18º CineBH (2024)

Um falso documentário, ou talvez um documentário real a respeito de uma ficção inexistente. Um jogo de cena em que uma atriz, na pesquisa para interpretar a protagonista de um filme ilusório, conversa com pessoas reais. É difícil definir o status de Ramona, produção dominicana que subverte as definições preconcebidas do que seria ficção ou documentário, real ou falso, espontâneo ou encenado. A intersecção entre estas categorias constitui o próprio objeto de estudo da diretora Victoria Linares Villegas. 

No entanto, nada disso soa confuso ao espectador. A montagem dedica tempo suficiente para adentrar este território metalinguístico. A princípio, Camila Santana é a atriz principal de uma ficção intitulada Ramona, a respeito de uma garota de 15 anos, confrontada a uma gravidez indesejada. No entanto, sentindo-se despreparada para o papel, parte em busca de adolescentes que estejam atravessando situações semelhantes, ou a tenham vivenciado recentemente. Aos poucos, convida-as para participarem do filme. 

O resultado se foca no processo, ao invés do resultado. Pouco importa se a ficção original viria a acontecer, ou não. O interesse da autora reside neste encontro, espécie de pesquisa de campo ao vivo, quando se discute como a protagonista de ficção deveria andar, se vestir, falar, agir. “Eu passaria por uma moradora desse bairro? O que falta para eu ser parecida com vocês? Pode falar a verdade”, dispara Camila, na função de atriz-entrevistadora, às moradoras de bairros pobres. 

Logo, seria irrelevante determinar o que realmente ocorreu, ou até que ponto algumas situações são roteirizadas (estimuladas, encenadas) ou espontâneas. Villegas nunca busca uma “verdade”, e sim a discussão a partir deste encontro mediado pela linguagem cinematográfica. A fala de uma garota será reinterpretada pela atriz, que depois ensaia cenas na frente das meninas, para elas. Estas, então, passam a dirigi-la, sugerindo o reforço de alguma característica de corpo e voz. Em geral, elas riem de escárnio ou desconforto diante de uma representação de suas vidas, em tempo real.

A ficção que dispara a narrativa seria mero pretexto para desenvolver este filme-processo, disposto a abraçar imprevistos numa colaboração coletiva.

Em contrapartida, seria possível determinar que Ramona, a ficção que dispara a narrativa, seria mero pretexto para desenvolver este filme-processo, filme-fluxo disposto a abraçar imprevistos e aleatoriedades, numa colaboração coletiva. Ao final, os letreiros afirmam que este é um filme de todas elas, juntas, sejam cineastas, atrizes ou adolescentes convidadas a gravar depoimentos. Embora a plena horizontalidade seja utópica, a obra manifesta o desejo de abraçar todas estas mulheres numa forma coletiva e solidária de criação.

Curiosamente, a discussão possui um foco restrito, apesar de um dispositivo cênico tão amplo. A diretora se concentra na psicologia das garotas, no momento de descoberta da gravidez. Nunca questiona aspectos morais de seus corpos e suas escolhas, nem se foca em aspectos práticos ou financeiros do futuro próximo. Evita analisar a responsabilidade dos pais das crianças (todos ausentes, sem exceção), em legislação, em políticas públicas. A reação e o eventual suporte de pais e amigos das garotas são mencionados por alto, porém, de modo geral, foge-se à discussão sociológica do tema. O longa despreza o antes da gravidez, assim como o pós-nascimento. Privilegia o tempo presente.

Deste modo, a relação destas personagens com os bebês a caminho nunca é sequer mencionada. Queriam de fato ter filhos, estão contentes com a chegada dos pequenos? Preocupadas? Não saberemos. Ramona retira da gravidez a discussão acerca da maternidade em si, algo que parece contraditório ou, pelo menos, raro. Elas são vistas somente enquanto garotas grávidas, num estado que parece, ao filme, perene e permanente. O principal posicionamento feminista da obra reside no foco exclusivo de Villegas às garotas, desprezando embates a respeito da importância e/ou obrigação de cuidar do bebê segundo regras sociais particulares.

Conforme a narrativa avança, a ficção se torna cada vez menos importante: as várias Ramonas se convertem em atrizes amadoras, encenando em tom despojado as cenas do pretenso roteiro fictício. Camila Santana questiona se teria legitimidade para viver uma garota da periferia, devido à origem de classe média, mas nunca levanta dúvidas a respeito da sua idade: seria justo a mulher muito mais madura se passar por uma garota de 15 anos? O duelo entre verossimilhança e artifício, legitimidade e farsa, permeia esta segunda metade da trama.

No final, o projeto dominicano estabelece uma espécie de terapia de grupo. Sentadas lado a lado, em grupos cada vez maiores, as jovens compartilham experiências, escutam os relatos das demais, identificam-se com as confissões alheias. Ao encenarem uma história tão pessoal, ganham a oportunidade de brincar com elas, seja reforçando os traços grosseiros dos pais dos bebês, ou criando desfechos alternativos — quando sugerem à atriz que fuja do rapaz charmoso na festa e volte para casa, antes de cair na lábia dele e dormirem juntos. O jogo de cena permite tanto se confrontar ao real quanto imaginar realidades paralelas. As garotas se empoderam através do exercício audiovisual.

Talvez o dispositivo astuto, com tantas trocas de poder e controle, se torne mais interessante do que a própria discussão à qual que deveria servir. Ainda conhecemos pouco das meninas no desfecho, posto que cada uma oferece frases esparsas a respeito de seus casos particulares. Desconhecemos nomes, ambições para o futuro, distinções socioeconômicas, relações afetivas. Ramona admite com clareza a decisão de tomar estas meninas por exemplos de um tema, na condição de estudos de caso. Caberá ao espectador decidir se tal escolha as transforma em meros objetos de pesquisa, ou se as torna ainda mais humanas em meio à coletividade indistinta e intercambiável de meninas grávidas.

Ramona (2023)
6
Nota 6/10

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