A Garota da Vez (2023)

A misoginia produz monstros

título original (ano)
Woman of the Hour (2023)
país
EUA
gênero
Suspense
duração
95 minutos
direção
Anna Kendrick
elenco
Anna Kendrick, Daniel Zovatto, Tony Hale, Nicolette Robinson, Pete Holmes, Autumn Best, Kathryn Gallagher, Kelley Jakle,
Karen Holness, Jessie Fraser
visto em
Cinemas

Conforme os filmes e séries a respeito de crimes reais se multiplicam, aumenta a preocupação com nosso consumo acrítico destas tragédias. Plataformas de streaming como Netflix e Max estariam transformando a dor de indivíduos em diversão para as massas? Criadores como Ryan Murphy não fetichizam estes matadores em série, mostrando-os como cafajestes sedutores (na veia dos igualmente questionáveis Cinquenta Tons de Cinza e 365 Dias?). Não estamos convertendo estes indivíduos em ícones da cultura pop?

Face a estas preocupações fundamentais, Anna Kendrick oferece uma alternativa provocadora em sua primeira experiência como cineasta. A Garota da Vez (Woman of the Hour) parte da história real de Rodney Alcala, fotógrafo condenado pela morte e estupro de cinco garotas. Acredita-se, no entanto, que ele seja responsável pelo assassinato de 130 mulheres nos Estados Unidos. O jovem chegou inclusive a aparecer num programa de namoro na televisão, quando foi reconhecido pela amiga de uma vítima. 

Em primeiro lugar, a cineasta multiplica o protagonismo. Ela ocupa um dos papéis centrais, interpretando Sheryl Bradshaw, aspirante a atriz que participa do programa vespertino. No entanto, a trama divide o holofote com Laura (Nicolette Robinson), a espectadora que reconhece Alcala (Daniel Zovatto) durante a emissão, e Amy (Autumn Best), a adolescente e sobrevivente que viria a denunciá-lo. O roteiro também se posiciona junto a algumas vítimas, tentando compreender o que teria aproximado estas mulheres do criminoso.

Embora seja muito astucioso narrar a história de um serial killer pela perspectiva do machismo estrutural, a montagem prejudica bastante o resultado.

Deste modo, o suspense evita a premissa do “caso excepcional”, composto por um vilão e uma heroína, preferindo enxergar uma rede de violência contra mulheres em diversos setores (familiares, profissionais, culturais). Sheryl sofre com a misoginia brutal de produtores durante testes de elenco, além do assédio constante do vizinho (Pete Holmes), enquanto as maquiadoras do programa precisam aturar o machismo do chefe Ed (Tony Hale). 

Enquanto os policiais ignoram acusações contra Alcala, as mulheres podem contar apenas umas com as outras. As melhores cenas decorrem de momentos onde a maquiadora e cabeleireira do Dating Game acolhem Sheryl no programa destinado a representá-la de maneira infantilizada, e quando a atriz é ajudada por uma garçonete no bar, durante um encontro ameaçador. Generosamente, Kendrick oferece oportunidades a diversas atrizes ainda pouco conhecidas (incluindo Kathryn Gallagher, Kelley Jakle, Karen Holness), exatamente como os produtores da ficção se recusam a fazer. A coerência política da autora transparece em gestos como este.

Já o adversário masculino é poupado de uma representação caricatural. Nunca se lançam hipóteses para o comportamento predatório do fotógrafo — ele não é fruto de um lar problemático, nem teria sofrido bullying na escola, como se costuma insinuar a respeito de matadores. Para a autora, pouco importam as motivações dele. A prioridade reside na defesa das mulheres, e na absurda passividade das autoridades conforme o homem atacava suas vítimas impunemente. O machismo estrutural constitui o verdadeiro tema do projeto.

Infelizmente, a montagem prejudica bastante o resultado. Na intenção de colocar todas as mulheres em pé de igualdade, opta-se pelo registro em paralelo, tentando equilibrar diversas linhas narrativas simultaneamente. Às vezes, o foco se divide entre a gravação do programa, as tentativas frustradas de Laura em denunciar Rodney, e a viagem de Amy com o serial killer rumo ao deserto. Esta dispersão dilui o suspense, interrompendo cenas-chave no ápice de seu desenvolvimento. O montador Andy Canny ainda efetua idas e vindas no tempo, no interior da estrutura paralela, fragmentando em excesso a trama. Com tantas datas próximas, é difícil determinar qual encontro ocorreu antes e depois dos demais.

Kendrick tampouco permite a estas personagens demonstrarem alguma forma de variação. A estrutura coral faz com que tenham pouquíssimo tempo de tela, e se restrinjam a uma única característica ou emoção. Laura limita-se aos olhos marejados e a expressão de medo; Charlie e Sarah permanecem na condição de vítimas. Elas nunca se emancipam da relação com o matador, sendo definidas por ele, em relação a ele. As mulheres precisariam ganhar novos aspectos de sua rotina (trabalho, estudos, família, afetos) para existirem enquanto figuras autônomas, para além do ataque sofrido por Alcala.

A Garota da Vez ainda demonstra um trabalho discreto e acadêmico de composições. Pode-se falar numa produção funcional, correta, sem ousadia em termos de enquadramentos, movimentos de câmera ou simbologias de qualquer tipo. Os sentidos são esmiuçados com uma clareza excessiva. “Eu sabia que ele era um risco, mas todo mundo é um risco”, declara a primeira vítima, a respeito do namorado que a abandonou durante a gravidez. 

As formulações continuam. “Dá pra encontrar algum cara nessa cidade que não seja um maníaco?”, perguntam as funcionárias do departamento de arte do Dating Game. “É incrível como um escroto egoísta pode arruinar a sua vida”, formula a outra. As reflexões são óbvias, caso algum espectador ainda não as tenha elaborado por conta própria. Embora seja muito astucioso narrar a história de um serial killer pela perspectiva do machismo na sociedade, não é particularmente inteligente sublinhá-lo de novo e de novo, duvidando da capacidade de compreensão do público.

Resta uma obra competente, marcada por uma ou outra escolha notável — a perseguição noturna no estacionamento, em particular. Anna Kendrick inicia sua carreira de diretora com um projeto mais desafiador enquanto conceito do que realização. Parece uma aposta segura para ela e para os produtores, como se estivessem testando as habilidades da artista antes de lhe entregar narrativas mais caras e ambiciosas. Em tempo: o roteiro, a montagem, a direção de fotografia, a direção de arte e a trilha sonora deste filme são comandados por homens. O longa-metragem traz 21 créditos de produção, coprodução e produção executiva, segundo o IMDb. Apenas Kendrick, Miri Yoon e Tracy Rosenblum são mulheres.

A Garota da Vez (2023)
6
Nota 6/10

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