O Deserto de Akin (2024)

O herói opaco

título original (ano)
O Deserto de Akin (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
78 minutos
direção
Bernard Lessa
elenco
Reynier Morales, Ana Flávia Cavalcanti, Guga
Patriota, Welket Bungué, Patricia Galleto
visto em
Festival do Rio 2024

“O que você fez, seu maluco?”. A frase de Érica (Ana Flávia Cavalcanti) a Akin (Reynier Morales) chega a ser engraçada — um dos poucos momentos de humor em um filme tão sisudo. Akin poderia ser descrito por muitos adjetivos, mas “maluco” certamente não é um deles. Este imigrante cubano, que se mudou para o Brasil em virtude do programa Mais Médicos, constitui o ápice da ponderação e da tranquilidade. Dia após dia, ele atende seus pacientes, visita a namorada e perambula de um lado ao outro com um semblante imperturbável.

Akin constitui um protagonista atípico. Em virtude da condição de estrangeiro, da pressão pela ascensão bolsonarista no Brasil, e pelos dois amores em seu percurso — por Érica e por Sérgio (Guga Patriota) —, ele teria material de sobra para encarnar o herói trágico, movido a catarses, ao furor ideológico e passional. No entanto, pelo olhar do cineasta Bernard Lessa, o homem se mostra tão carinhoso quanto indiferente aos rumos de sua vida. Nunca parece realmente sentir saudades de Cuba, nem lamentar o retorno iminente. Pratica a medicina com dedicação, porém, sem demonstrar verdadeiro afinco pela atividade.

Ele acompanha o tom do projeto na totalidade — O Deserto de Akin é certamente bastante coeso em sua estética, e coerente com os princípios adotados, da primeira à última cena. Trata-se de uma produção sem floreios, confiante na luz natural, mesmo quando ela não favorece as cenas (o ator negro praticamente se perde na escuridão da noite). O som estoura em diversos momentos, o que inclui o interior do consultório médico, enquanto as imagens criam uma paleta bege-terra que domina a experiência inteira. Nunca se aposta em variações de intensidade e de linguagem. Pode-se falar numa obra linear, voluntariamente monocromática e monótona.

Uma obra de discordâncias módicas e conciliações fáceis. Aposta-se num otimismo possível do enfrentamento ao sistema, sem necessariamente filmar o enfrentamento ao sistema.

As interações entre os personagens carregam este aspecto despojado, leve, um tanto inconsequente. A câmera na mão agita-se de um lado ao outro, enquanto os personagens são comportadamente adequados no centro da imagem. Existe um aspecto funcional da mise en scène: filma-se de maneira clara, sem qualquer arroubo de composição ou vaidade estética. Contanto que se veja Akin e Érica proferindo suas falas, o fato de estarem mais ou menos expressivos em relação ao espaço, à proximidade com a câmera, ou um com o outro, se torna secundário.

Por isso, o projeto prolonga tanto as virtudes quanto a estética bruta (no sentido de pouco polida) de A Matéria Noturna, longa-metragem anterior do cineasta. Ele persegue sua preocupação notável com os fluxos migratórios e a experiência de não-pertencimento em terra estrangeira. Lida com amores fugidios entre portos e praias, através de enlaces sinceros e efêmeros. Akin soa como um primo não-tão-distante de Aissa, enquanto Érica desempenha o papel antes atribuído a Jaiane. O movimento continua.

A propósito de movimentações, a própria mise en scène ainda soa engessada, carente de dinamismo. Os personagens estão sentados, esperando seus interlocutores entrarem em cena para iniciar uma conversa. As ações não necessariamente produzem consequências, ou estas são escondidas pela montagem (numa elipse generosa, o garoto com problemas na visão foi operado, tudo deu certo, bola pra frente). Os bares estão estranhamente vazios e silenciosos, assim como as praias e os consultórios. Para onde vão as pessoas, depois da festa que marca o início da narrativa? Aqui, ama-se ou trabalha-se ou discute-se o futuro, enquanto o naturalismo implicaria justamente na dificuldade de lidar com todos estes aspectos ao mesmo tempo.

A menção ao naturalismo pode soar incompatível em um longa-metragem com tantos simbolismos atrelados ao realismo fantástico. Akin é amigo das cobras que passeiam ao redor de sua casa, e se vê transportado para o deserto do título. Talvez o espaço representasse seu isolamento, além da falta de perspectivas (em oposição ao símbolo do mar, tão frequente no cinema brasileiro, e importante para o sujeito originário de uma ilha). Ora, nem nestes fragmentos, a transposição produz algum sentimento profundo no protagonista. A fantasia tampouco irrompe o cotidiano e o transforma. Constitui um parêntese que, por definição gramatical, poderia ser retirado da frase sem prejuízo ao sentido.

Em consequência, a decisão final, no aeroporto, surpreende por oferecer uma reviravolta num filme avesso a transformações, e também por resolver da maneira mais sucinta possível (um close-up simples e curto) os rumos do personagem. Interessante como as cenas se ressentem de novos planos, de uma decupagem maior e mais detalhada. A obra carece de texturas e variações na maneira de olhar, de enquadrar, de perceber os espaços para além das sequências tão pragmáticas. Jamais se compreende ao certo a relação de Akin com o espaço, com aquilo ele deixou para trás, ou ainda com sua sexualidade. 

Por que, depois de um ano no Brasil, lidando com pessoas de baixa escolaridade, o homem nem sequer tenta falar em português, ou um portunhol que facilitasse a comunicação? Por que nunca tentou sair do pequeno vilarejo onde habita, para explorar as cidades ao redor? Como se sente ao escutar a proliferação da extrema-direita no país — sempre convenientemente incorporada a posteriori, em sons de rádios e podcasts? O imigrante atravessa a narrativa sem deixar marcas fortes na própria história. Existe um aspecto fantasmático no homem desprovido de raízes fortes, seja em Cuba, seja no Brasil.

Compreende-se que, para Lessa, este homem represente o avesso perfeito do bolsonarismo crescente. Imigrante, negro, bissexual, cubano, progressista, Akin vai de encontro a tudo o que este conservadorismo truculento repudia num Brasil inclusivo. No entanto, apesar destes embates evidentes, o diretor ainda prefere uma obra de discordâncias módicas e conciliações fáceis, fabulares — vide o trio abraçado na cama, vivendo a utopia sentimental de uma resistência silenciosa. Aposta-se num otimismo possível do enfrentamento ao sistema, sem necessariamente filmar o enfrentamento ao sistema. O espectador que imagine, sonhe e suponha os confrontos daquelas vidas tão doces quanto herméticas.

O Deserto de Akin (2024)
5
Nota 5/10

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