Mambembe (2024)

Filmes sonhados; filmes possíveis

título original (ano)
Mambembe (2024)
país
Brasil
linguagem
Documentário, Drama
duração
98 minutos
direção
Fábio Meira
elenco
Índia Morena, Madona Show, Murilo Grossi, Dandara Ohana
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

Em 2010, Fábio Meira começou a filmar seu primeiro longa-metragem, que se chamaria Mambembe. Na trama, um topógrafo (inspirado no pai do cineasta) viajaria por diversos estados brasileiros, encontrando três artistas de circo no caminho. Seu envolvimento amoroso e fraterno com estas mulheres determinaria a poesia do projeto. Ele chegou a gravar inúmeras cenas, no entanto, por dificuldades de produção, a obra jamais foi concluída. Outros filmes passaram à frente na carreira do autor, como As Duas Irenes (2017) e Tia Virgínia (2023).

Quatorze anos mais tarde, ele retoma o material anterior, e se dedica a finalizá-lo. No entanto, a simples retomada do roteiro escrito em 2009 lhe soa impossível. O Brasil mudou, assim como as representações de gênero. Imagina-se que o próprio diretor tenha evoluído a partir das experiências seguintes — ele descreve a iniciativa original como “mistura de imaturidade com obstinação”. Logo, propõe um filme sobre o filme que nunca existiu, ou, ainda, o documentário de uma ficção interrompida.

Meira descobre que as lacunas da filmagem prevista inicialmente constituem forças, ao invés de fraquezas, ou problemas a contornar. Por isso, decide ler ao espectador as cenas jamais concretizadas (na condição de narrador em off), e revelar suas intenções para cada trecho ausente do roteiro. Além disso, reencontra os atores de 2010, para entender o que pensam do projeto abordado. Estes artistas de circo permanecem na arte ou a abandonaram? Como se sentem em relação ao romance melancólico imaginado pelo jovem diretor? Agora, os encontros com artistas se convertem na possibilidade de refletir acerca da passagem do tempo. Eles ajudam a investigar experiências que determinam o nascimento, a morte e o ressurgimento de filmes.

A retomada do material arquivado inicialmente constitui uma forma de resistência em si própria. O cinema permanece em movimento.

O resultado encanta pelo cruzamento orgânico entre instâncias tidas como incompatíveis: a parcela de ficção, a retomada documental a partir destas filmagens, e o making of do projeto abortado. Ao inserir o segmento fictício no terço central, Meira permite que o espectador nunca o observe apenas enquanto história inventada. Quando chegamos aos enlaces do topógrafo, já sabemos das circunstâncias da interrupção, conhecemos as dificuldades para contratar o elenco, em paralelo a outros elementos que impedem nossa imersão na narrativa.

Trata-se, portanto, de um distanciamento voluntário do diretor. A relação tumultuada entre o espectador e estes registros constitui um objeto em si: tateamos a todo instante nosso posicionamento, assim como aquele do cineasta em relação ao seu trabalho. Ele nutre carinho pelo Mambembe original? Nostalgia, remorso? A montagem permite ver as brigas entre o cineasta e Murilo Grossi, seu ator principal; além da frustração pela artista que abandonou as filmagens. Aparentemente, estes sentimentos díspares coabitam em seu criador. 

A representação vai além. O longa-metragem se destaca de tal maneira do real que imagina uma profusão de formas e linguagens, capazes de abraçar a abordagem transmídia e transgeracional. Além do encontro entre cinema e circo (as cenas com fogo e bambolês são muito bem pensadas em termos de enquadramento, luz e duração), promove ilustrações em pintura a óleo no início, e colagens no final. A obra se destaca a todo tempo do real à sua frente. Modifica-se sem parar, num fluxo que constitui seu método e sua finalidade. 

Assim, reforça a ideia da arte enquanto trabalho e construção. Meira se esquiva do romantismo da criação artística. Pelo contrário, valoriza o treinamento, o esforço, o aprimoramento e a luta constante contra o esquecimento de manifestações artísticas face à contemporaneidade. Enquanto o circo se esforça em manter sua popularidade e reconhecimento, o cinema brasileiro trava um duelo semelhante junto aos espectadores — ainda que em outra esfera econômica e estrutural. A retomada do material arquivado inicialmente constitui uma forma de resistência em si própria, reconhecendo que o esforço pode ser apropriado, reinventado, mantido vivo muito tempo depois. O cinema permanece em movimento.

Mambembe ainda surpreende pelo caráter inesperadamente emocional do reencontro entre os artistas e sua própria versão, dez anos atrás. Quase todos eles mudaram de cidade, afastaram-se uns dos outros, despediram-se do picadeiro. Em menos de quinze anos, testemunharam o declínio acelerado de um ofício que os acompanhava há décadas. Olhando para o passado, refletem acerca da arte, de sua relação com os familiares, daquele filme estranho que nunca tinham visto finalizado. Confrontam-se a si mesmos na condição de fantasmas, evocações.

Assim, se o longa imaginado possuía (para as três atrizes) um caráter de faz de conta, de brincar-de-ser-atriz, agora enxergam a representação com um misto de ternura e pesar. O filme segue o mesmo caminho: embora Meira tenha se firmado enquanto cineasta maduro, de longas-metragens excelentes, ele mantém a lembrança daquela pequena grande obra, que se torna objeto de estudo em sua própria genealogia. Ao invés de abordar o amor pelo circo, pelas paisagens e pelas mulheres, estabelece o amor pelo cinema, ou pela persistência nesta vocação. As personagens da trama resistem e abandonam, em um filme que tanto restou quanto se esvaiu. Mambembe é luta e desilusão, efemeridade e permanência.

Mambembe (2024)
9
Nota 9/10

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