Em 2010, Fábio Meira começou a filmar seu primeiro longa-metragem, que se chamaria Mambembe. Na trama, um topógrafo (inspirado no pai do cineasta) viajaria por diversos estados brasileiros, encontrando três artistas de circo no caminho. Seu envolvimento amoroso e fraterno com estas mulheres determinaria a poesia do projeto. Ele chegou a gravar inúmeras cenas, no entanto, por dificuldades de produção, a obra jamais foi concluída. Outros filmes passaram à frente na carreira do autor, como As Duas Irenes (2017) e Tia Virgínia (2023).
Quatorze anos mais tarde, ele retoma o material anterior, e se dedica a finalizá-lo. No entanto, a simples retomada do roteiro escrito em 2009 lhe soa impossível. O Brasil mudou, assim como as representações de gênero. Imagina-se que o próprio diretor tenha evoluído a partir das experiências seguintes — ele descreve a iniciativa original como “mistura de imaturidade com obstinação”. Logo, propõe um filme sobre o filme que nunca existiu, ou, ainda, o documentário de uma ficção interrompida.
Meira descobre que as lacunas da filmagem prevista inicialmente constituem forças, ao invés de fraquezas, ou problemas a contornar. Por isso, decide ler ao espectador as cenas jamais concretizadas (na condição de narrador em off), e revelar suas intenções para cada trecho ausente do roteiro. Além disso, reencontra os atores de 2010, para entender o que pensam do projeto abordado. Estes artistas de circo permanecem na arte ou a abandonaram? Como se sentem em relação ao romance melancólico imaginado pelo jovem diretor? Agora, os encontros com artistas se convertem na possibilidade de refletir acerca da passagem do tempo. Eles ajudam a investigar experiências que determinam o nascimento, a morte e o ressurgimento de filmes.
A retomada do material arquivado inicialmente constitui uma forma de resistência em si própria. O cinema permanece em movimento.
O resultado encanta pelo cruzamento orgânico entre instâncias tidas como incompatíveis: a parcela de ficção, a retomada documental a partir destas filmagens, e o making of do projeto abortado. Ao inserir o segmento fictício no terço central, Meira permite que o espectador nunca o observe apenas enquanto história inventada. Quando chegamos aos enlaces do topógrafo, já sabemos das circunstâncias da interrupção, conhecemos as dificuldades para contratar o elenco, em paralelo a outros elementos que impedem nossa imersão na narrativa.
Trata-se, portanto, de um distanciamento voluntário do diretor. A relação tumultuada entre o espectador e estes registros constitui um objeto em si: tateamos a todo instante nosso posicionamento, assim como aquele do cineasta em relação ao seu trabalho. Ele nutre carinho pelo Mambembe original? Nostalgia, remorso? A montagem permite ver as brigas entre o cineasta e Murilo Grossi, seu ator principal; além da frustração pela artista que abandonou as filmagens. Aparentemente, estes sentimentos díspares coabitam em seu criador.
A representação vai além. O longa-metragem se destaca de tal maneira do real que imagina uma profusão de formas e linguagens, capazes de abraçar a abordagem transmídia e transgeracional. Além do encontro entre cinema e circo (as cenas com fogo e bambolês são muito bem pensadas em termos de enquadramento, luz e duração), promove ilustrações em pintura a óleo no início, e colagens no final. A obra se destaca a todo tempo do real à sua frente. Modifica-se sem parar, num fluxo que constitui seu método e sua finalidade.
Assim, reforça a ideia da arte enquanto trabalho e construção. Meira se esquiva do romantismo da criação artística. Pelo contrário, valoriza o treinamento, o esforço, o aprimoramento e a luta constante contra o esquecimento de manifestações artísticas face à contemporaneidade. Enquanto o circo se esforça em manter sua popularidade e reconhecimento, o cinema brasileiro trava um duelo semelhante junto aos espectadores — ainda que em outra esfera econômica e estrutural. A retomada do material arquivado inicialmente constitui uma forma de resistência em si própria, reconhecendo que o esforço pode ser apropriado, reinventado, mantido vivo muito tempo depois. O cinema permanece em movimento.
Mambembe ainda surpreende pelo caráter inesperadamente emocional do reencontro entre os artistas e sua própria versão, dez anos atrás. Quase todos eles mudaram de cidade, afastaram-se uns dos outros, despediram-se do picadeiro. Em menos de quinze anos, testemunharam o declínio acelerado de um ofício que os acompanhava há décadas. Olhando para o passado, refletem acerca da arte, de sua relação com os familiares, daquele filme estranho que nunca tinham visto finalizado. Confrontam-se a si mesmos na condição de fantasmas, evocações.
Assim, se o longa imaginado possuía (para as três atrizes) um caráter de faz de conta, de brincar-de-ser-atriz, agora enxergam a representação com um misto de ternura e pesar. O filme segue o mesmo caminho: embora Meira tenha se firmado enquanto cineasta maduro, de longas-metragens excelentes, ele mantém a lembrança daquela pequena grande obra, que se torna objeto de estudo em sua própria genealogia. Ao invés de abordar o amor pelo circo, pelas paisagens e pelas mulheres, estabelece o amor pelo cinema, ou pela persistência nesta vocação. As personagens da trama resistem e abandonam, em um filme que tanto restou quanto se esvaiu. Mambembe é luta e desilusão, efemeridade e permanência.